Absurdamente linda. Como nenhuma outra podia ou conseguiria ser.
Absurdamente a única, eu me casaria com ela.
Suas meias desfiadas, seus cabelos desgrenhados e suas unhas sujas, sujas de sangue de tanto que as roía. Os pés imundos descalços, número 35 com unhas vermelhas já descascando. Vejo sua cara redonda cheia de sardas em cada esquina, em cada mulher triste que cruza avenidas na faixa de pedestres. Uma mulher de modos rude e delicada de um jeito constrangedor.
Mal pronunciava seu nome, eu mal lembrava do seu nome, o que eu sabia é que aquela mulher era pra vida inteira, ou pra parte boa dela. Um rabo grande, empinado, que se encaixava nos meus desejos como nenhum outro. Peitos pequenos, cabiam na minha mão sem sobrar. Peitos durinhos que ainda me apontavam com ternura. Fodia com ela até dentro do meu sono.
O nome dela, Regina, às vezes me esqueço, nunca de sua buceta rosada. Parecia uma frutinha dessas frágeis, eu a despia quase sem tocá-la, eu a ajeitava perto de mim, fodíamos por horas sem dizer nenhuma palavra.
Quando seu corpo começou a cair seus olhos foram escurecendo. Algo ainda restava dentro daquele saco de peles e sentimentos. Alguma coisa que eu tinha medo, ou nojo, de tocar, ainda restava daquela mulher.
Os cabelos começavam a rarear, as vezes eu a comparava com uma cebola descascada até a metade, deixada fora da geladeira pra enrugar, pra murchar e apodrecer. Não dizia isso a ela, mas a via como toda aquela casca despencando. Com o tempo passei a falar olhando pro seu queixo, ou por cima do seu ombro, queria evitar os anos que carregavam seu olhar e suas maçãs.
Já conversávamos menos, eu a ouvia marcar consultas ao telefone, em voz baixa mas ouvia ainda. Eu comecei a comer na cozinha, ela na sala, fodíamos uma vez ou outra, muitas destas vezes só por costume, maquinalmente e com muito pouco tesão. Durava menos que uma hora, sempre eu por cima com a cara enfiada no travesseiro. Virando o rosto pra não ver suas calcinhas no chão, um dia pequenas e coloridas e tinham cheiro de buceta, agora pareciam mais fraldas daquelas de pano, amareladas. Ela fechava os olhos e dizia coisas e gemia um bocado, mas eu sabia que não era ela quem fazia aquilo, seu cérebro dizia que tinha que segurar, que ainda podia com aquilo tudo. Com cafés da manhã, com roupas sujas no cesto de plástico, com a porta do banheiro aberta.
Absurdamente linda! Isso me segurava ali na poltrona esperando uma de suas crises convulsivas de lágrimas, que vinham com mais força a cada aniversário.
Nada do que eu dissesse, nada do que eu fizesse, nada tiraria dos seus ombros aquele fardo. Quarenta e nove anos depois do primeiro choro, rostinho vermelho, mãos pequenas. Entende quando digo absurdamente linda? São muitos anos despencando depressa, e ainda repito a mesma frase. A casa com paredes manchadas com fomo e umidade, portas já rangendo, flores artificiais enfeitando uma sala vazia, vazia de gente, cheia de móveis e quadros e cortinas.
Comecei a pensar em várias desculpas numa carta, uma viajem com urgência, alguma tia com câncer terminal, nada que a pudesse magoar mais que seu corpo desmanchando. Não consegui escrever nenhuma linha, a tinta da caneta nem chegava até o papel.
Eu também me sentia diferente. Olhava no espelho e via menos pêlos no meu peito, mais barriga que outrora. Mas meus olhos, meus olhos continuavam os mesmos, com a mesma firmeza, meu sorriso ainda estava intacto, meus braços desenhados por músculos ainda rijos. Eu vivia dentro daquele corpo. Tínhamos a mesma idade, os mesmo gostos, os mesmos amigos e o passado bem dividido. Como é que aquela mulher pôde se adiantar tanto? Quando foi que a deixei escapar?
Penso que eu não estava o tempo todo lá. Trepávamos e depois eu dormia o sono dos deuses, cansado, relaxado. Nunca percebi que ela continuava olhando pro teto, com um cigarro entre os dedos, até reclamava pela manhã que eu não tinha ouvido nada do que disse. Realmente nunca tinha ouvido nada.Escrever uma carta seria uma saída pra mim, mas só pra mim que conheço um caminho pra fugir. Pra ela seria como terminar de arrancar sua alma daquelas peles frias.
Muitas noites eu quis tê-la só em meus braços, beijar sua boca, lamber seu corpo, guardar seus seios pequenos em minhas mãos, ser o homem que ela dizia que eu era. Aquele homem era só o homem que a fodia, que a admirava com a pele sardenta, com os cabelos perfumados. Aquele homem que só via uma mulher deslumbrante nua sobre a cama. Uma mulher que estava sempre lá, sempre depois de um dia de trabalho, sempre pronta pra apagar a luz. Os anos castigaram aquela mulher, a minha mulher. Agora fico enjoado com aquele corpo gelado procurando aconchego em mim, reviro na cama e até ronco quando consigo. Tenho pensado cada vez mais em terminar logo aquela carta, ou começá-la. Mas algo que desconheço em mim, algo que os olhos não alcançam, que palavras não exprimem, algo me faz rasgar mais folhas e abraçá-la. Como jamais a abracei, sem pensar nas suas formas, sem desejar fodê-la como antes. Fico aqui ainda, repugnando o cheiro de leite com maizena saindo da sua boca, rejeitando seus lábios trincados, fico apenas observando sua tristeza tentando encontrar alguma coisa dentro daquele vaso rachado.
Absurdamente linda! Como será sempre, mesmo intacta, sobre a cama com todos os anos correndo contra. Porque eu sei que não vou conseguir escrever nem a primeira linha daquela carta.