24.4.08

Escuta, preciso da sua ajuda, mas pára de dedilhar os dedos nessa mesa de madeira. Vou repetir a estória do começo. Ela disse pra eu contar às crianças uma história de Natal e eu não conhecia nenhuma então contei da vez que meu pai queimou o cú tentando montar uma lareira falsa na casa da minha avó. Daí as crianças começaram a rir e pararam e perguntaram o que é cú. E eu contei, claro, toda sinceridade com as crianças. Um menino, o maiorzinho dos que estavam sentados no chão me ouvindo, disse que a mãe dele sempre manda o pai dele, que mora noutra cidade, tomar no cú quando conversam ao telefone. Acredita que a mãe dele disse que era uma forma dos adultos dizerem "tá tudo certo então". Eu disse, sua mãe é uma cretina menino. Agora escuta, eles me denunciaram e deu até polícia. Porque aquelas crianças nem eram tão crianças e não tenho culpa por não saber os nomes das renas e nem acreditar que elas voam. Quem mandou meu pai queimar o cú na fogueira? E... pára com esses dedos, não percee que tá aumentando meu nervosismo? Tô falando rápido com as palavras correndo da minha boca. Mas antes da polícia eu tentei fugir do assunto e deixei as histórias de lado. Tentei um jogo e distribuí as cartas do baralho que sempre carrego no bolso entre eles, é, as crianças. E foi tão bacana. Sério, eles pegam rápido. As apostas com balas e chicletes eram pra dar mais animação na brincadeira. Disseram que o vício começa assim. Bando de gente estúpida, os adultos da casa. As meninas até arriscavam de um charminho pra enganar as jogadas dos meninos. Eu fiquei olhando pra eles com emoção. Ei, será que não pode ficar só olhando pra mim enquanto falo, sem fazer gestos nem revirando esse seu olho? Daí, e isso ainda foi antes da polícia, ensinei uns passos de dança que eles jamais vão esquecer. Eu avisei que não tinha jeito para aquilo, ninguém quis me dar ouvidos e agora tô tentando te dizer que preciso passar a noite aqui. Porque falaram até de pedofilia. Puta que pariu, não menti não, aquilo aconteceu mesmo com o meu pai. E achei bem feito porque eu queria ter ido passar as férias na casa de praia do tio Joca, que me deixava bebericar suas bebidas. Amanhã eu tento pensar em algo original pra desistirem de mim. No final vão ver que ensinei coisas valiosas pra vida daquela garotada. Que vão descobrir cedo ou tarde que quando alguém manda a gente tomar no cú é como o primeiro soco na cara em uma briga, né não? Tá tudo certo, eu durmo aqui só por essa noite. Se você não se importar, claro!

23.4.08

"O que muita gente não entende é que a ausência de dor (ou confusão) não significa alegria. O fato de não estar fodida, sem grana, abandonada, arrependida, não me torna uma pessoa feliz. Já não disseram por aí que a felicidade é aquele espaço entre uma tristeza e outra?" - Luana Vignon
Eu disse que não me sentaria ao lado dela no ônibus. Voltávamos do colégio e ela vinh outra vez com aquela conversa que tinha algo a me dizer. Não, ela não tinha e não deveria. Não queria que chorasse, tínhamos uma partida importante daquele jogo de baralho que irmão do Doca ensinou pra gente, ela não podia ficar com a gente lá no fundo do ônibus (os moleques já tinham deizado isso bem claro). Flávia era o nome dela. Vestia uma saia que lhe cobria os joelhos e sua blusa era igual aminha pois sempre nos encontrávamos no intervalo de vestir e despir o uniforme. Mas aqueles bilhetes e aquele sorriso eternamente terno me confundiam. Decididamente eu não nme sentaria a seu lado naquele ônibus e disse do mesmo jeito que faria com qualquer um daqueles moleques lá no fundo. Não entendi nada, ela me olhou com raiva e chorava sentidamente e todos riam da garota. Ganhei as três primeiras partidas até que o ônibus parou na frente da minha casa. Há dezessete anos não toco mais nas cartas do meu baralho.
Frequento lugares silenciosos onde o ruído de uma garrafa estilhaçando contra um balcão de maciça madeira pode ser o mais agradável aos seus ouvidos depois um dia inteiro entre pessoas e vidas. São esses os meus lugares favoritos.
Com o passar do tempo desaprendi a conversar com as mulheres. Que são cheias de sentimentos que não acredito e não possuo. Mas não me sinto um homem solitário. Não passei ileso tampouco tenho orgulho do que ficou, mas a tristeza nunca foi minha inimiga, assim como a dor. As mulheres precisam de homens que queiram e saibam (não nescessariamente nessa ordem) cuidar delas, não eu. Gosto de ficar olhando o trato do garçom com os copos, aquilo é bonito de se ver, aquilo é mais bonito que qualquer demonstração de afeto e cumplicidade.

Outra noite eu estava decidindo entre o caminho de casa e mais uma dose, uma moça caminhou até mim e pediu um cigarro. Alcancei sem muito entusiasmo e lhe ofereci meu isqueiro. não nos olhamos. Senti seu perfume que entrou pelo meu nariz tão rápido quanto seus passos em direção à porta e à rua. Deixei o copo pra noite seguinte. Na rua o de costume, carros e pessoas, um cachorro rasgndo um saco de lixo que ajudei a arrastar até o outro lado em cima da calçada.

Poucos passos já no meio da rua o desenho de uma sombra começava a surgir debaixo da luz do poste. Não seria um assalto ou pedinte disso eu tinha quase certeza. A dona daquele perfume estava agora me encarando e eu sequer tinha me virado. Mas eu sei reconhecer sombras. Ela sorria com a palma da mão na testa como querendo se convencer de alguma coisa. Quando abaixou a mão e descobriu o rosto pude ver que Flávia ainda mantinha os traços mais engraçados que todas as outras garotas. Mas agora não estava diante da menina chorona, foi só um breve instante, ali eu via uma mulher enorme. Seios redondos e sua cintura desenhava uma peça de porcelana daquelas mais caras. Pernas compridas que iam até onde queriam de certo. Nem precisamos nos reapresentar, ora essa, eu sabia mais daquela garota que qualquer um. Ela disse que já tinha me visto entrar ali e resolveu se aproximar pra ver se era o mesmo moleque do ônibus. Nossa conversa não durou mais que rápidos minutos, do outro lado da rua o cachorro rasgava o saco de lixo e um cara fisicamente parecido comigo atentava da nossa conversa. É como se eu tivesse algo a dizer enquanto ela se afastava mas como aconteceu naquele dia antes da minha última partida eu me virei e fui embora. Acho que devia ter perguntado o que é que ela queria me contar naquele mesmo dia. Mas agora era eu que caminhava pra outra direção sem nenhum desejo realizado. E ela só veio até mim pra que todos pudessem rir dessa vez do moleque que eu continuava sendo. Podia ter dito apenas que deixássemos pra depois do jogo mas eu antes gritei como fazem os meninos em situações que acreditam ser de risco. Hoje é mais fácil entender o que se passou dentro da gente aos treze anos. Só não é a mesma coisa virar as costas, porque eu até queria ter continuado aquela conversa e sabido o que aqueles bilhetes deixaram pra trás.
Ao contrário do que tenho dito e feito perante minha vida, não que isso seja algo muito animador, ela continua a estender lençóis no varal. Acho, e sei que isso é algo que não vale muita coisa, que continua linda debaixo de todos esses anos. A mulher mais bonita da rua fazia os meninos chorarem durante a noite. Mas sozinhos, engolindo soluços e pedindo a algum deus que o sol viesse logo trazido por ela. Os meninos cresceram e hoje sabem que ela não era muito mais