14.3.08

Meus dias com a Regininha

Faz vinte dias que voltei pra São Paulo. Aquele corredor cheio de goteiras agora parece mais iluminado, mais estreito.
Viajo muito, sempre estou de malas prontas e nunca esqueço o lenço vermelho pro pescoço. Esse é meu ritual. Se dá sorte não sei, mas nunca gasto com hotel nem pensão, nem comida nem com sexo. Esse último é que tem me motivado. O importante na mala é ter sempre uma camisa branca, pra usar com o lenço.
Vinte dias atrás, eu de capote azul, luvas e aquele cheiro de uma noite longa ainda no quarto. E o quarto a vinte dias atrás deixou uma ponta de saudade entre minhas pernas. Um conselho: nunca estique a viagem por conta de um pau (ou um olhar terno).
Minha mãe entra com a grana. Começou um discurso; que tava na hora de pensar o que ia ser da minha vida, o que eu tava pensando disso o que queria daquilo... Aí veio aquela luzinha em cima da cabeça, a que só aprece pra te fuder mais ainda em longo prazo, e com a cara de boa filha, cínica, que aprendi a fazer perfeitamente disse que ia fazer uns cursos de fotografia, em outras cidades. Ela abriu a boca com aqueles dentes amarelados de café alinhados num sorriso que só as mães conseguem manter, abriu a bolsa e fez o cheque. Meu pai ficou falando por onde eu tinha que começar... Abriu a carteira, deu um beijo na testa... Mochila pronta, eles são uns amores mesmo, dinheiro na bolsa e muita vontade de rir da cara dos dois quando o primeiro ônibus se afastou da rodoviária. Alívio?!
Volto pra casa a cada vinte dias pra arrumar uma nova mala, e eles ficam falando pra todo mundo da filha querida que vai ser fotógrafa. Sou uma cretina. A cada vinte dias.
Alguma coisa tinha dado errado, alguma coisa ia começar a dar errado.O quarto dessa vez teve que ser pago porque eu ainda não tinha feito as amizades certas naquele lugar. Questão de dois ou três dias. O cara do balcão na pensão tinha um olhar assustadoramente interessante e a mulher dele uma bunda que dava tchauzinho quando virava o corredor. Não tinha muita gente hospedada ali não, só quem tava no osso, pouca grana e estômago vazio. Moleza, durante o dia era só dar umas voltas, tirar umas fotos e pronto. Mamãe e papai já preparavam uma moldura e um lugarzinho especial pra pendurar.
Nessa volta já dava pra ficar sabendo o que acontecia por lá e onde o negócio esquentava. Voltei pra pensão e me pus na tarefa de procurar a mulher do cara com olhos interessantes pra arranjar um ferro, roupa passada ainda não dava pra dispensar.
Camisa branca e o lenço vermelho. Calça jeans preta, velha, e uma bota.
A viagem começou.
Uma pessoa diferente e todos os pescoços começam a virar esquinas. As mulheres reparando a estranha com roupas diferentes e cabelos esvoaçados. Os homens disfarçando seus paus todos apontando na direção dos meus seios estrategicamente à mostra entre os botões da minha camisa. O lenço faz a vez de botar pequenas idéias naquelas cabecinhas.
Desci a rua de paralelepípedo rebolando como uma vadia, e os paus diversos e desconhecidos enfurecidos com minha ousadia. As mulheres torcendo os narizinhos e enchendo os pulmões de indignação.
Parei num bar cheio de homens, tinham algumas mulheres ali mas estas deviam ser como eu e não quiseram saber a razão de tantos tropeços quando passei pela mesa de sinuca. Mais um botão aberto e um copo cheio no balcão. Fácil. Me recostei virada pros caras do bar e afrouxei um pouco meu lenço. Dava pra ouvir os suspiros. Ajeitei meu jeans e virei, agora pro moreno com sobrancelhas desenhadas, dentro do balcão, pedi outra dose com um sorriso que me valeu as outras duas que tomei logo em seguida. Fui na direção do WC e reparei um olhar me seguindo, balancei a cabeça e senti a mão na minha cintura, que me acompanhou. Foi aquela camiseta surrada dos Beatles. Nessa hora dispenso apresentações, sou uma estudante de fotografia querendo me divertir. Ele insistiu em saber meu nome. Veio como se fosse normal, e eu nem tinha pensado nisso."Regininha!"
E comecei minha novela. Mauricio devia ser o nome dele, não lembro, mas tô com esse nome na memória. O zíper e a camisa surrada dos Beatles. Os botões abertos e aquela mão segurando firme meus peitos. Outra mão, essa mais esperta, abrindo meu zíper e procurando afastar minha calcinha fio dental. Só sussurrávamos. Ouvia-se apenas a música do jukebox, os tacos encaçapando as bolas e risos embriagados. A boca dele chegou perto do meu ouvido "Dois dedos Regininha!" e eu senti minhas pernas estremecerem ao som daquela voz rouca. Saí do banheiro com o lenço no lugar certo e os botões novamente sugestivos.
Vinte dias e sinto o mesmo gosto na boca. O mesmo arrepio nas pernas. "Dois dedos Regininha!"
Acordei às nove e meia e não tomei café. O banho foi rápido. Mais algumas fotos e mais dinheiro pra próxima viagem. Sou uma ótima filha (da puta). Camisa branca, o lenço, e mais uma noite de olhares lançados aos meus peitos. Adoro isso. Entrei em um teatro cheio de gente que como eu buscavam novos encontros e com certeza ali eu ia me dar bem. Passei por duas moças de vestidos que se olhavam ternamente, aquilo sim daria um ótimo capítulo. Um sujeito tirava a aliança do dedo e escondia no bolso da calça. Um casal tentava disfarçar uma paixão, o mais alto tinha uma mão fina, quase transparente, o outro usava sapatos de couro fino e os cabelos começavam rarear. Lugar agradável aquele. Dei passos largos e despreocupados. O lenço fazia me sentir mais alta.
Faço amigos rápido. Brindamos ao casal que decidiu extravasar a paixão. Passei entre os olhares ternos das duas moças e esses agora miravam meu andar. Me aproximei e brindamos nossa saída dali. As três. Uma delas, Mariana (essa vou lembrar), morava nos fundos do teatro e tinha cortinas cor de vinho na janela que dava vista pra viela que corria ao lado do lugar. Mais brindes e deixei que tirassem meu lenço. Mulheres fantásticas. Mariana e Danusa, acho que era Danusa.
Nove e meia. O café amargo me fez desistir das fotos.
Perto da pensão tinha um parque e umas crianças ficavam correndo o dia todo por ali. Sentei num banco de tronco de árvore e fiquei prestando atenção no trabalho das formigas, todas em fila, todas trabalhando juntas e organizadamente. Seguem sempre umas as outras, não podem ousar sair da fila. É isso que meus pais esperam com esse negócio de futuro e fotografia? Que bosta. Tinha uma menininha loirinha no balanço e o pai dela, eu acho, empurrava a cadeirinha e divertia a pequena. Os olhinhos dela brilhavam tanto que me senti feliz ali! O pai dela estava de costas pra mim e usava uma camisa preta meio desbotada. Virou. Beatles. Levantei pra sair dali correndo mas ele me notou e vinha na minha direção. "Olá!" O café amargo regurgitou na garganta. “Linda sua filha”. “Sobrinha, não sou casado, ainda”. (Por que não fui tirar as fotos da minha mãe?) “Continua sendo uma boneca”. “Estamos indo embora, não moro aqui. Foi bom revê-la Regininha!” O plano não era esse. Encontros durante o dia estavam fora de cogitação. Mas a Regininha não mediu isso, de longe acenei pra garotinha loirinha e gravei bem aquele olhar tão cheio de sinceridade. O banco já não estava confortável. Na caminhada de volta decidi inverter o caminho e conhecer o outro lado da rua da pensão. Uma loja de cds. Um sebo de livros. Um açougue, com cadernetas provavelmente. No fim da calçada uma lojinha de artesanatos com muitas coisinhas penduradas na entrada. (Minha mãe precisaria de quadrinhos e molduras, um álbum talvez)
A dona da loja, é o que parecia, quis me atender, eu disse que estava à vontade mas não olhei pra cara dela.
"Regininha?"
E o café amargo quase saiu pela minha boca pela segunda vez.
"Mariana!"
Re-encontros não tão pra mim. Meu negócio é fotografia (o cheque tava nominal). Achei que sem o lenço não me reconheceriam. Puá! E abriu a boca a me contar chatices daquele lugar.
"Dois dedos Regininha, e nunca mais saí daqui..."
Estranho esse negócio que deu de sentir saudade, de me emocionar com essas lembranças. Lá, na hora que encontrei com o cara dos Beatles e depois com a Mariana, a lembrança daquele quartinho nos fundos do teatro, do WC do bar... Nostalgia descabaçada.
Vinte dias com o lenço esquecido na gaveta e nenhum telefonema. Tá tudo como deveria. Mas alguma coisa aqui tá incomodando. Devo ter aprendido a sentir saudades. Que cuzona.
Desisti das fotografias, das formigas e de toda essa merda de futuro e o caralho...
Os olhinhos daquela menina loirinha brilhavam tanto...
Comprei um tênis, um all star, não dei meu endereço pra Regininha, ela ficou lá no quartinho atrás do teatro com o cara do bar.
Minha mãe fez um mural com minhas fotos. Sempre que olho pra ele sinto uma vontade louca de me trancar no meu quarto (ainda moro com meus pais). Duas voltas na chave, me jogo na cama e apago a luz.
Coisa estranha. Saudade desconcertada.
Tiro a roupa a abro a persiana.
Ela ainda me visita.
”Dois dedos Regininha!”

28/06/07