30.4.09

Jorge Luís Borges

Uma Oração
Minha boca pronunciou e pronunciará, milhares de vezes e nos dois idiomas que me são íntimos, o pai-nosso, mas só em parte o entendo. Hoje de manhã, dia primeiro de julho de 1969, quero tentar uma oração que seja pessoal, não herdada. Sei que se trata de uma tarefa que exige uma sinceridade mais que humana. É evidente, em primeiro lugar, que me está vedado pedir. Pedir que não anoiteçam meus olhos seria loucura; sei de milhares de pessoas que vêem e que não são particularmente felizes, justas ou sábias. O processo do tempo é uma trama de efeitos e causas, de sorte que pedir qualquer mercê, por ínfima que seja, é pedir que se rompa um elo dessa trama de ferro, é pedir que já se tenha rompido. Ninguém merece tal milagre. Não posso suplicar que meus erros me sejam perdoados; o perdão é um ato alheio e só eu posso salvar-me. O perdão purifica o ofendido, não o ofensor, a quem quase não afeta. A liberdade de meu arbítrio é talvez ilusória, mas posso dar ou sonhar que dou. Posso dar a coragem, que não tenho; posso dar a esperança, que não está em mim; posso ensinar a vontade de aprender o que pouco sei ou entrevejo. Quero ser lembrado menos como poeta que como amigo; que alguém repita uma cadência de Dunbar ou de Frost ou do homem que viu à meia-noite a árvore que sangra, a Cruz, e pense que pela primeira vez a ouviu de meus lábios. O restante não me importa; espero que o esquecimento não demore. Desconhecemos os desígnios do universo, mas sabemos que raciocinar com lucidez e agir com justiça é ajudar esses desígnios, que não nos serão revelados.
Quero morrer completamente; quero morrer com este companheiro, meu corpo.

29.4.09

Algumas coisas viram moda, é o que dizem(?). Músicas, filmes, livros, até paixão tá virando tendência. Bicho, é um tal de ser eclético.
Eu acredito que algumas coisas viram "aquelas coisas dos outros". Eu gosto e também deixo de gostar de um monte de coisas, mas é por minha conta e risco e tem um monte de gente que deve me achar bem estranha.
Sempre me incomodou a palavra "estranha", não sei explicar como foi que isso começou, eu mesma uso muito dela, uma vez por dia pelo menos. O que me incomoda é me referir a alguém assim, o que faço às vezes também. Não gosto quando me chamam de estranha, mesmo se for na brincadeira, eu disfarço, mas isso me incomoda e eu não sei mesmo explicar porque. Mas não é de mim nem de como me sinto com certos apontamentos agora.
Eu vi uma garota e um livro do Jack London, ela sentada ao meu lado no vagão do metrô, eu tava com sono e pensava num café quente mas quando eu reparei o título na capa do livro eu não consegui mais desviar minha atenção daquela moça. Não me lembro da aparência dela, lembro das unhas com esmalte quase vinho, ela tinha um anel no polegar e lia "O lobo do mar". Não, ela folheava o livro, assim como quem vira páginas de um livro com receitas de bolos, escolhendo o tipo mais saboroso, o recheio mais saboroso, a cobertura mais saborosa. Página por página virando a esmo sem pausa.
Ela podia estar procurando alguma anotação, talvez quisesse reler aquele capítulo que mais gostou. Talvez só estivesse admirando as páginas, por que não?
Página por página virando acompanhadas por meus olhos agora já despertos, e um tanto angustiados, como são pela manhã.
Quando eu li esse livro me deparei com uma leitura fantástica, conheci ali um escritor que é hoje um dos meus preferidos, o conflito naquela embarcação - a Ghost - me tomaram de uma emoção e excitação difícil de explanar. Outra noite um amigo me disse que estava lendo um outro livro do London, não lembro agora qual era, e quase com a mesma emoção que eu acompanha as mãos daquela moça virando as páginas eu falava pra ele sobre minhas impressões com esse livro.
Ela percebeu que eu a olhava curiosamente e desprendeu um sorriso, e eu lhe disse "eu adoro esse livro!" no que ela fuzilou "um amigo esqueceu na minha casa, mas eu não li não, não gosto desses livros antigos, são muito parados pra mim, tô lendo aquele livro da Sônia Abrão, sabe qual é?"
O metrô descarrilhou e todos os senhores passageiros foram soterrados abaixo da avenida São João, inclusive eu e a Sônia Abrão. Final feliz pro Lobo Larsen*.
Claro que eu disse "ah, eu sei" porque a conversa findava ali, sem nenhuma explicação sobre que tal livro essencial deva ser esse, o que a moça tá lendo.
O amigo dessa moça tem sorte, pois vai receber de volta seu livro cuidadosamente intocável. Essa moça que eu não sei o nome e nada mais que a cor do seu esmalte, não vai mesmo gostar daquele livro, porque não dá pra encarar essa briga sem se machucar, pelo menos um pouco. É uma pena trazer no bolso certas afirmações.
Eu sei, tô chutando cachorro morto aqui, mas é que me falta ar em alguns locais, e isso tem sido bem estranho. Tô trombando pessoas bem Estranhas, e não tem sido incômodo chamá-las assim.



*Lobo Larsen
é um personagem do livro O Lobo do Mar, do Jack London