20.3.08

Romance Negro

"Todas as manhã, das oito às onze, todos os dias da semana, o cinema é ocupado pela Igreja de Jesus Salvador das Almas. A partir das duas da tarde exibe filmes pornográficos. À noite, depois da última sessão, o gerente guarda os cartazes com mulheres nuas e frases publicitárias indecorosas num depósito ao lado do sanitário. Para o pastor da igreja, Raimundo, e também para os fiéis - umas quarentas pessoas, na maioria mulheres idosas e jovens com problemas de saúde - a programação habitual do cinema não tem importancia, todos os filmes são, de qualquer forma, pecaminosos; e todos os crentes da igreja nunca vão ao cinema, por proibição expressa do bispo, nem para ver a vida de Cristo, na Semana Santa."

Rubem Fonseca
***
Ao meu amigo Procrastinador, um grande beijo!
O mágico tirou um coelho da cartola. Me entregou o coelho erguido pelas orelhas de algodão. Deixei o bichinho cair no chão e a cabeça rachou e tingiu aquele pelo branquinho. Ela me olhou com reprovação como se quisesse me convercer que aquilo fosse sempre acontecer. Não mesmo. Estiquei meu dedo médio e sorri pra ela. Mamãe acha que não sou capaz de cuidar dos bichinhos. O que ela não sabe é que eu fico feliz quando os vejo parados, calados, gelados. Ela não entende nada. Na próxima vez que ela me olhar daquele jeito agarro o coelho pelas orelhas e atiro bem no meio da cara dela. Eu não matei porra nenhuma. Ele caiu, escorregou, culpa daquele mágico de fundo de quintal. E eu tenho certeza que ela vai repetir a mesma história do cachorro, do gato e dos peixinhos, mas eu não tive culpa em nada. Juro. Mas ela nunca acredita em mim, não tem jeito. E tenta me enganar o tempo todo. Mas agora já não me importam as marcas que vão ficar por debaixo da minha camiseta. Giro pelas orelhas e arremesso bem no meio da cara dela. Pior é que ela tem uma puta cara de mãe, mesmo, e isso me incomoda um pouco.

19.3.08

Tinha uma estrada. E um cruzamento e um trilho de trem e uma placa com uma seta apontando o leste, ou o oeste. Podia apontar pra qualquer direção que isso não faria diferença pra nenhum de nós. Eu e ela, que já não tinha muita paciência pra lidar com minhas manias e escolhas. E sobre os trilhos passam vagões de ferro. que cruzam a estrada debaixo de um semáforo tosco de seis lampadas. Amarelo que fica laranja caindo num vermelho de perigo que vai clareando até tingir uma luz verde que vai piscando em par até que os vagoões tomem suas direções.
Parados e com o pensamento inerte. Olhei pro seu rosto que já não tinha expressão alguma senão um ricto de graça que se perderia no meio da nuvem de poeira que os vagões levantavam. Eu procurei sua mão com a minha, eu olhei pros dois lados desde o começo. Mas é nescessário saber a direção certa, mesmo que seja pro caminho errado, porque isso não é o que mais importa entre dois pedaços de um só.
E a poeira abaixou deixando as luzes piscando e dançando no topo do poste de um semáforo tosco. Mas não sobrava tempo. A placa mudava de direção a cada nuvem de poeira. Sabíamos que não sobrava mais tempo. Pra nós que não tínhamos nada além de manias e nenhuma paciência. Decidimos que o leste era meu e o oeste ficava com ela e com suas pernas compridas e morenas. Não foi fácil decidir aquilo. O sinal avisava que os próximos vagões corriam nos trilhos. A poeira começara a subir outra vez. E ela saiu caminhando, mas ela não cumpriu o combinado. Ela seguiu em direção ao nascer do sol que não se levanta à oeste. Porque ela nunca foi mesmo muito sincera.
"A insensatez que você fez
Coração mais sem cuidado
Fez chorar de dor
O seu amor
Um amor tão delicado..."

18.3.08

Querida Vadia

Tenho convulsões, muitas convulsões. Meus olhos ficam espremidos querendo saltar pra fora. Não consigo ordenar meus movimentos e acabo sempre todo babado jogado no chão.
Disse que não demoraria mais que duas semanas, duas semanas são quase quinze dias. No relógio mais ou menos 340 voltas inteiras. Sentei. Esperei ansiosamente. Troquei as cortinas e os lençóis e comprei um vinho, um vinho bom. Esperei. Se passaram mais que duas semanas e meu relógio parou. Ela não ligou pra me contar do acidente, sim, porque deve ter acontecido um. Não sei por onde começar a procurar. E se eu sair daqui e ela chegar, e tocar a campainha e não me encontrar? Não, vou ficar aqui com minha melhor roupa esperando minha querida correr até mim e me encher daqueles beijos molhados e abraços sufocantes. Preciso me acalmar, não quero que ela me veja com os olhos saltados. Sentado de frente a nossa fotografia, ela pendurada no meu pescoço, sozinho no meu quietismo.
Era inverno e estávamos dormindo abraçados. É ótimo dormir assim, com um dos braços enlaçando a cintura da outra pessoa. Dizíamos coisas desconexas, sempre que nos drogávamos as coisas pareciam menos coerentes. A folhinha do calendário mostrava um campo todo florido no dia dezoito, mas já estávamos no terceiro dia do mês seguinte. Desde que trancamos a porta a folhinha apresentava aquelas begônias do dia errado. O dinheiro da venda dos cavalos permitia que não nos preocupássemos com mais nada que não fosse continuarmos abraçados. O corpo dela era sempre o meu maior refúgio, suas curvas desenhavam nobres formas, minha menina sempre fora a mais bela. Nos conhecemos no velório do seu pai, grande amigo meu de tempos distantes, naquele mesmo dia eu a trouxe pra casa. Desde então mantivemos nossas promessas.
A noite mal caía e os lábios pequenos da minha menina já mordiam minha carne, ela me chupava e dizia que minhas bolas eram muito engraçadas. A buceta de menina mais quente de todas, que todas as mulheres maduras, conhecedoras das verdades. A buceta dela era a única verdade. Ela pedia pra eu não parar nunca, me assustava um pouco mas logo ela estava me alcançando um cigarro ou buscando mais de suas drogas em alguma gaveta. Eu lhe dava muito dinheiro.
Um dia me disse que estava cansada de passar sua juventude dentro de um quarto mofado. Foi quando tive minha primeira convulsão. Ficou parada perto da janela me olhando com raiva enquanto eu tentava não me afogar com a própria língua.
Começou a sair quase todas as noites e gastava mais dinheiro do que eu dava. As noites que estava em casa ela se drogava e dormia virada pro outro lado. Quando eu abraçava seu corpo ela resmungava algo e me afastava. Eu sempre estava sentado na beira da cama esperando minha menina voltar, a luz ficava apagada e dava pra ouvir a voz de todos os homens que a deixava no portão. Nunca era o mesmo. As coisas foram ficando cada vez mais duras pra mim. As convulsões vinham quase todas as noites e muitas delas ela estava fora de casa. E quando não, dormia um sono tão pesado que nem me percebia ali no chão todo torto.
Mas eu a amava tanto que preferi ficar esperando que voltasse todas as noites. Ficava sempre agradecido aos homens que a traziam em casa, pela segurança dela. Não lhe poupava um tostão sequer. Sabia que ela gostava de coisas boas. Podia comprar essas coisas pra minha menina, que já era agora uma mulher. Uma mulher madura e conhecedora das verdades, nem o cheiro da sua buceta era o mesmo. Mas meu amor ainda era fiel. Nunca me permiti uma bronha, era como se eu a arrancasse do peito ou coisa pior. Uma devoção obnóxia.
Naquela noite arrumou uma mala com muitas das suas coisas e me pediu um bocado de dinheiro. Seriam duas semanas com uns amigos da cidade. Ela me disse sem nem me olhar nos olhos.
Dei o dinheiro, bem mais do que ela havia me pedido. Estiquei também uma folha de cheque no mesmo valor que ela poderia sacar quando precisasse, mas não aceitou. Seriam mesmo apenas duas semanas, eu pensei.
Quando saiu deu pra ver o beijo que deu no rapaz que esperava dentro de um carro. Quase não consegui segurar minha língua, fiquei caído no chão por várias horas, ou dias.Virei a folhinha da parede e tenho feito isso desde então, é só ter calma e continuar virando as datas. São só duas semanas. Eu e minha menina vadia. Sempre cumprimos nossas promessas.

17.3.08

Aqui na minha casa mora uma menina. Que usa meias coloridas pra esconder perninhas finas. Aqui ela faz as coisas do jeito que tem vontade. Porque a casa é grande e o corrimão da escada é largo. Dá pra deslizar de barriga até lá embaixo e girar no ar numa pirueta quase profissional até cair de bunda no tapete. Se você quiser.
Aqui na minha casa tem um gato de botinas que deixa marcas no corredor mesmo com seus passos silenciosos e majestrais. Mas ele só vem no fim da noite, quando a cidade começa a brincar de sonhar.
Aqui morou um homem também, e ele tinha bigode. E ele dizia que a dor valia muito mais que mil saudades. E eu achava que ela era louco e nunca abria a porta antes de olhar pelo olho mágico de vidro.
A menina fez a mala com todas as sua meias mais bonitas e colocou o gato com suas botinas sujas com o barro da chuva mais gostosa do fim da tarde em uma caixa de sapatos. A mesma caixa onde eu guardava fotografias, bilhetes e muito daquilo que o homem achou que eu nunca acreditaria. Fez um bilhete gozado com versos escritos de ponta cabeça e assinou com um beijo. Com certeza assinou com um beijo. Mas eu não rasguei. Porque as pessoas tem o direito de partir.
Agora não mora mais ninguém na minha casa que já não é tão grande e não precisa mais de um corrimão. Mas aqui tem uma porção de saudades que doem. São minhas. E essas ninguém irá levar.

resiliência

O que aconteceu não foi mais uma daquelas brigas, sabemos que não. Você me atirou daquela escada e antes de bater com a cabeça na quina do móvel eu olhei bem dentro dos seus olhos. Percebi uma lágrima ou outra escorregando do seu olho que já não sei se é seu mesmo. Terrível. Fiquei caída numa pocinha de sangue que escorria da minha boca e fazia minha cabeça girar.

Você desceu as escadas devagar, seus passos eram lentos e cheguei a achar que você iria se virar e sair correndo, se enfiar debaixo daquele lençol amarelado com nosso suor. Eu gritei alguma coisa que soaria como SOCORRO, mas minha boca encheu daquele líquido quente e só consegui pensar nas horas que perdi tentando entender alguma coisa daquele filme que assistimos. Sei que aquilo não era o melhor a se pensar naquela hora. Mas meu corpo já não podia me ajudar a pensar em muita coisa, a dormência chegava arrasando tudo.

Mas eu te olhei nos olhos e tentei falar, mas eu não podia falar, não sabia como. É isso. Preciso aprender a falar, porque percebi que sou muda (o que não é bom). Quando eu cambalhotei do sétimo degrau daquela escada de trinta e dois degraus me preocupei em não amassar o vestido que era o mesmo que usei no dia em que nos esbarramos pela primeira vez. Na época eu ainda dormia com o seu irmão. Seus amigos disseram que eu daria trabalho, porque já tinha me acostumado. Não vou amassar meu vestido por você. Eu vou levantar daqui e limpar tudinho, tenho que botar as coisas no lugar de uma vez. Os seus amigos têm razão. Me acostumei com a vida, com vestidos e cambalhotas. O que mudou de lá pra cá não se faz visível visto daí de cima, do topo da escada. E esse negócio de amor muda o que se enxerga daqui debaixo.

*isso veio na cabeça depois de reler um texto no blog da Fernanda
Repostando...

Na esquina

Não vou sair de casa porque estou sem meus olhos. Perdi durante a noite, andando pela rua. Nem percebi, não senti dor. Cheguei aqui e percebi que estou sem eles. Tô com esses buracos na cara agora. Tava descendo uma rua curtinha e lembro que tinham dois moleques numa calçada, pareciam irmãos, o mais velho ensinava o outro a "deixar bem apertadinho, pra não perder o melhor", é o que falavam quando passei. Virei a esquina e ela tava recostada no poste, a perna fina, comprida, o decote da blusa deixava a mostra o colo tatuado. Não consegui evitar o encontro do nosso olhar. Ela ta sempre ali, sempre do mesmo jeito, esperando sempre. Parei em frente a uma loja de cds do outro lado da rua e da vitrine podia ver ainda aquelas pernas finas.
Ainda não sei como perdi meus olhos. Devo ter deixado sobre a mesa, ou me roubaram.
Gosto de caminhar sabe, durante a noite na maioria das vezes. Meu joelho ta esfolado, também não lembro como, ou se, eu caí. Aí eu continuei caminhando.
O bom de andar por aí no escuro é que você só enxerga o que quer enxergar, o que não quer você finge que não viu. É simples, sem erro. Tem muito vira lata vagando na noite e eu já dividi muito pão dormido com eles. Mas não podem ter me arrancado os olhos.
Devo ter sentado num dos bancos na praça, sempre faço isso. Se você fizer um vídeo, quinze minutos que seja, você terá um ótimo material pornográfico, pra todos os gostos mais sacanas. O pessoal dos prédios apagam as luzes e ficam entre as cortinas observando toda a movimentação por entre as árvores. É uma delícia ficar ali sentado escutando o som baixinho dos casais trepando! Mas agora sem meus olhos não vou mais sair de casa.
Encontrei o Juarez, verme, ele tava subindo o zíper e a menina devia ter uns dezessete anos. A boca vermelha não confundia, dezessete anos. Passou por mim e nem me percebeu. Rola a maior festa pelos cantos daquela praça. A menina limpou a boca e segurou o braço dele.
Pra algumas pessoas o passeio noturno não faz muito bem não. A senhora tava gritando, e o moleque lá longe com a sacola na mão, o mesmo que tava ensinando o irmão a apertar bem pra não perder o melhor. É por isso que ando por aí. Gosto de ver gente de verdade. Gente que cuida do irmão menor e ensina o essencial, gente que agacha atrás de um murinho de praça e morde, gente que encosta a perna fina no poste e cobra caro, gente que grita e depois senta na calçada e começa a rir, depois chora sem parar. Gosto de ver os vira-latas brigarem pelo pedaço de pão dormido.
Não sei o que aconteceu depois. Deitei no banco, olhei mais uma vez pra pernas finas (agora em movimento). Cobri meu rosto com meu capote surrado e acordei aqui, sem meus olhos e esses buracos.
Não senti dor nenhuma, nem me lembro o que aconteceu, arrancaram os dois e ainda esfolei o joelho. Caralho!
Vou vender minha televisão e comprar um rayban. O cara vai precisar de uns óculos também, sou míope. Ou era. Mas não vou deixar que me descubram e venham buscar o resto, ah isso não. Por isso não vou mais abrir a porta.
Vou arrancar meus pés e não vou mais sair daqui, já que não posso ver toda a sujeira que tem lá fora não quero também me mover de onde estou. Sem pés, sem olhos. Ninguém vai me encontrar. E quando enxergarem através dos meus tudo aquilo que seus olhos não podem ver entenderam porque deitei naquele banco e cobri o mundo com meu capote.
Quando virar a esquina você vai entender o que tô falando. Mas eu vou ficar aqui, e vou te olhar da janela, não vai ser diferente na sua noite. E você não vai me ver porque me escondi, atrás dos buracos que ficaram na minha cara.

você tem que mijar em pé

“Você lembra da Larissa? A filha da mulher dos botões, das rosas. É bem típico dela soltar certos comentários...”
E a noite não acabava logo, não acabava nunca. Tentei desligar meu espírito do corpo e dar uma volta. Ela falava, mas pra si aliás, e mexia os braços, mexia os meus também. Encostei meus lábios naquela boca. “Peraí, deixa eu te contar o que fiquei sabendo daquela vagabunda da Larissa”. Continuei contando os carneirinhos, dava um tiro na cabeça de cada um que enroscava na cerca.

Seis da manhã. Acordei ao lado de um trapo úmido, lágrimas tão verdadeiras quanto minha admiração por aquele caderninho do Vitor Flora. Meu espírito tava ali do lado, rachando da minha cara imbecil. Esfreguei o olho, bocejei (o que agravou tudo), estiquei meu braço e a lembrança boa do que tinha acontecido naquela cama já tinha sumido. Só a poeirinha tava ali me embaçando a vista. Ela me olhou de um jeito que fez com meu espírito, parado e em pé do lado da cama, caísse no chão numa gargalhada convulsiva. “Você pegou no sono na melhor parte da história. Por que ainda me preocupo com você?" Me faço essa pergunta todos os dias. É bom ter alguém te esperando, mas vamos colocar nessa frase algumas limitações.

Você vira pro lado e sua noite paralisa, soluços, soluços e soluços. O sexo passa a ser mecânico. Não faço amor, gosto de foder. Ela chora, eu gozo. Tento explicar mas aqueles soluços me vencem sempre. “Não fica assim. Eu te amo!” Xeque-mate. Acaba a noite. Seis da manhã.

Arrumei minhas poucas coisas várias vezes, mas me considero covarde por não conseguir passar da segunda noite. Dá aquela sensação de bicha, vontade de mijar sentado. Homem que é homem não volta antes da terceira, meu pai falava isso.

Aí fiquei com esse fama de fila de supermercado, com registro e tudo. Não que eu não faça amor, claro que faço, mas dou descarga assim que limpo meu rabo. A tal da Larissa é que deve saber das coisas. A culpa é minha, e daquela história de lubrificar com a frase.

Quando a mulher descobre o poder que ta repousado no algodão da calcinha, ah não dá outra. E choram. Mas a Larissa deve saber que tem chance. Eu digo "eu te amo" e como a buceta dela, ela fica com aquela boca aberta.

Vendi meu carro, peguei uma gripe, pisei na merda. Quando acaba a novela começa a putaria, e a boca dela não fecha, não seca, não dá trégua. Aí eu boto meu algodão no ouvido e solto a frase. Sexo mecânico. Disse que fazemos amor, eu trepo.

Na porta da geladeira tem um bilhetinho: "Bom dia! Te vejo mais tarde!"
Subo a escada com falta de ar e arrumo as coisas. Grande merda, nunca passo da segunda noite.
Guardo o bilhete no bolso e coço o saco. Não tem diferença se é quarta ou sexta-feira, a noite nunca acaba. Volto daqui dois dias, e digo a mesma coisa. Eu trepo, ela diz que faz amor (mas não consegue gozar). Aí eu mando flores e ligo pra tal da Larissa. E essa sim sabe que tem chance!

acontece quando você não desfaz um laço

Fica ali parado, vivendo seus pesadelos letargicamente. Tem um olho a mais que conseguiu numa dessas esquinas onde se aprende a viver. Não viveu. Na verdade ele não vive. Fica ali recostado no seu covarde desejo de des-existir. Ele é um bosta, gosta disso. Não se permite uma bronha. Ele não. Acredita no amor e em toda a encrenca que vem junto nesse mixto de babaquices e choraminguações. Tem um terno cinza com uns botões afeminados, usa aos domingos, mas não vai à missas. Tipinho cretino e displicente. Macho sem pinto. Puta dum trouxa que não come boceta. Não porque não gosta mas o caso é que ele é muito certinho pra isso. Eu me pergunto; como se é certinho pra comer uma boceta? ou pra não comer uma?
Entro no carro (que não é meu!) e o som no talo me faz não olhar pra calçada do lado e ver a cara de cú dele. Aí ele acena, grita, levanta na ponta dos pés... diz bom dia e eu mando tomar no cú sem abaixar os vidros... giro o dial com dedos nervosos, e na caixa o volume mais alto possível.
Vidinha de merda essa dele. Mora sozinho e tem um bassê com toquinho de rabo, se parecem as bichinhas.
Já pensei em ajudar o coitado. Não devia ser tão difícil. Mas não deu, eu não dei, ficou assim. Deixo sem jeito: -Cê gosta que chupar um grelo?
Derruba o controle da tv e tenta enfiar a cabeça no chão. Aí não deu certo. Tava disposta dar uma força pro cara. Sou gente boa. Mas ele não chupa uma boceta.
Acorda às sete e meia. Toma seu Nescau com leite b às oito. O bassê lambe o sapato dele às oito e meia. Nove horas e ele tá lá acenando pra mim. Não tem pinto o coitado.
Minha mente sequelada não me poupou a repugnante lembrança do dia dos namorados de 98, caralho. Veio na minha direção com uma caixinha verde de laço roxo delicadamente ajeitado. Olhou pros lados pra ter certeza de que era mesmo seguro caminhar até ali, suava frio e seu olho esquerdo tremia irritantemente. Fingi não entender o que estava pra acontecer (mas se tivesse arrotado na hora certa podia ter evitado essa agonia que me persegue e puxa minha perna quando tento correr). Me entregou a caixinha que nem me dei o trabalho de agradecer. Isso foi na sexta. Na segunda trazia aquela marquinha arroxeada no pescoço e o "OI" apaixonado e agradecido de uma foda domingueira não foi pra ele. Três olhos. Esse último apareceu numa segunda feira. Tentei ajudar ainda, mas ele não chupa mais um grelo. Gosta de dar tchauzinho na ponta dos pés.
Não tinha problema nenhum na vida aí não quis abrir a tal caixinha (e as pernas?) pois que começou minha angustiante fuga. Uma aspirina por gentileza! Certas reminiscências cutucam a ferida que ficou. Quanto blábláblá...
Eis a questão: o cara é um mala e me culpa por não ter sido o autor da marquinha roxeada da segunda feira, só porque fez um laço de fita roxa impecável.
Sem acenos e sem um terceiro olho inquisidor filho da puta. Saio agora às oito e quarenta e cinco sem ter que tomar aspirinas. Quase nove anos. Quase três mil duzentos e oitenta e cinco dias de bronhas não batidas e grelos não chupados.
O bassê ta batizado de Doca. Ele, Maurício. O carro já devolvi pro meu irmão. Oito e quarenta e cinco e um copo de iogurte natural azedo pra caralho.
Desfiz o laço roxo e botei a fita em cima da geladeira enrolada no pingüim. Hoje tem corrida no jóquei. Não tenho dinheiro pra apostar, mas bebo no copo dos meus amigos, ele vai ficar atrás da cortina me esperando sair com minha saia de couro e meu salto 15 gasto de asfalto. Vai apagar a luz e fechar os olhos, os três. Uma última bronha talvez. O laço ainda intacto. E nunca mais vou precisar de aspirinas.

Mais que isso

Até poderia tentar convencer aqueles garotos que ali o negócio funcionava de outro jeito. Ali não adiantava ter talento, ter banca, saca? A podridão é que administrava o lugar.
Eles eram bons pra caralho, tinham uma puta vontade de ir cada vez mais longe, muitos sonhos e talento, e tinham mesmo. Quatro moleques de calça jeans e tênis velho, cabelo comprido, uns tatuados outros com brinco. Fodões. Ensaiavam as quintas, quando os pais estavam fora até mais tarde. Lá na garagem. Eu trabalhava num boteco no fim da rua 10, esquina com a avenida principal, perto da Igreja. Eles iam lá depois do ensaio e sentavam na mesa perto do balcão. Me contavam sobre como a música tava melhorando e vinham denovo com a história de tocar naquele lugar. Desisti de tentar tirar essa fixação da cabeça deles. Passei a incentivar então. Entrava e saia dali todo tipo de figura. Sabia como as coisas funcionavam. Eles não tinham idéia, mas eu sabia. Tinham como se dar bem noutro canto. Mas não. Iam tocar naquele palco (diziam).Numa quinta feira os pais chegaram cedo e não teve ensaio. Ficaram quase a noite toda no bar, de vez em quando tocavam um pouco lá. O palco pequeno pouco iluminado não deixava que o brilho daqueles moleques ofuscasse. Eram mesmo os Caras!
Fizeram uma música e pediram minha opinião, puta que pariu, o mundo podia acabar que já tava tudo certo, pô que satisfação...
Domingo o bar não abria, o dono ia pra igreja. Pois é. Dia que eu ia lá pro Parque Hugo Chaves, perto da Prefeitura, pra ficar junto deles, sempre assim. Eles de skate, bicicleta, eu de bermuda, cabelo preso. Domingão. Tinham o dom com skate, mas naquela garagem é que eram os moleques que eu admirava. Dú caralho os Caras!
Porra, tinha que dar uma força pra eles, eles me pediam opiniões e eu dava, mas não era só isso.
Entrou no bar com uma vadiazinha pendurada no braço do relógio de ouro, pinta de filho da puta. Sentou e pediu pra me chamar. O dono da cocaína. O de sempre. Começou a bajulação. Cumprimentos e todo tipo de babação. Sempre a mesma porcaria.
Tava ali e tudo que eles precisavam era que alguém chegasse e desse um toque. Eu devia isso pra eles. Pus na cara uma ruga despreocupada. Não foi difícil. "Eles tocam muito, às vezes tão aqui." "Hum... quem sabe... tô precisando mesmo de coisas novas. Manda passarem lá pra eu conhecer os garotos."
Ganhei um banquinho na garagem, camarote. Ensaio detalhado. Eles iam falar com o babaca. Os moleques disseram que eu merecia uma música.Sábado não fui trabalhar (meu tio era o dono do bar). Soltei os cabelos, eles me chamaram pra ir junto. Passaram o som (muito melhor no estúdio). Um outro cara sentado na cadeira, com um óculos de grau, sem o chapéu costumeiro e uma careca adolescente despreocupadamente à mostra. Um outro cara aparentemente, mas o mesmo babaca, sem a vadiazinha. Um silêncio de causar arrepio. Dor de barriga. Ele levantou e entrou na cabine. Deu umas voltas, resmungou umas palavras que não dava pra entender de fora. O aperto de mão! Meu tio faturou aquela noite.Não aconteceram mais ensaios nas quintas-feiras. Não usei mais minha bermuda nem cabelo preso. A mesa perto do balcão agora era ocupada por umas estudantes que me enchiam com sua estórias sobre salões e namoros frustrados. O babaca aparece com a vadiazinha (não a mesma, claro) mas não me chama mais. Tem a Dani trabalhando aqui agora, ela é índia.
Os moleques tão com um cd. Todas as rádios tão disputando os Caras. Vi num programa uma entrevista deles. Mudaram pra São Paulo em março daquele ano. Nem lembro qual dia os vi pela última vez. Bando de filhos da puta que me enchem dessa porra de saudade.
Tocaram algumas vezes por aqui mas não fui nos shows. Tenho uma filha pequena agora. Não casei. Moro com meu tio, o do bar mesmo. O cd deles eu comprei. Mas pro show a grana não deu. É foda. Eles conseguiram tocar lá. Foram longe e tão bem agora. Fiquei feliz pra caralho por eles.Tem uma música deles que conta a história da banda, mas meu nome não ta nessa, nem em nenhuma outra.
Os moleques eram fodões sim. Ainda tô no bar. Minha filha aprendeu a falar mamãe e isso foi demais pra mim. Tem apresentação dos Caras por aqui no mês que vem. Sessenta paus. Não vou. Já vi eles na garagem numa quinta feira e foi muito melhor, no banquinho vip só meu.Eu devia aquela conversa com o babaca pra eles. A vadiazinha ta na capa do cd. Se deram bem, eu não, tô feliz por eles.
Nenhum hits com meu nome. Meu tio ta com uma necrose na perna. Minha filha já me chama de mamãe.
Os caras eram muito bons mesmo. Pena que morreram, os quatro. Mês que vem tem show por esses lados, mas não são os mesmos moleques que sentavam na mesa perto do balcão que vão estar no palco.
Faz muito tempo, mas sem dúvida nenhuma aqueles da garagem poderiam ter formado a melhor das bandas.
Caralho, que saudade!

utopia, a dois

Charles Chaplin na parede me olhando com reprovação. Ela bem que mereceu aquela surra. Não estava bêbado, lembro de cada soco que levou, que eu dei. Mil vezes disse que seria diferente mas nunca deu certo. Amor é assim, fácil de saber se dá certo ou não, se dá você goza e pronto, se não você enche ela de soco.

Elis Regina no volume máximo pra que eu não ouça meu choro. O rosto dolorido e o contorno dos olhos com as marcas daquela paixão desmedida. Ele sabia que eu não tinha feito nada daquilo, mas os caras disseram que era verdade e ele me encheu de porrada. Não consigo atirar nele, arrancar esse demônio que se apossa de mim pouco a pouco. Ainda o amo.

Já me disseram isso uma vez; "nunca chupe a boceta de uma mulher, ela pode se apaixonar". Eu era moleque e ela tinha 1.75, porta de vidro, eu usava cueca boxer tamanho M. Grande mentira que acreditei. Chupei e agora tô aqui contando minha sina pro Chaplin. Será que ele já se apaixonou por uma boceta?

Eu tinha cabelos curtos e usava meias no sutiã. O nome dela era Cintia, tínhamos dezesseis anos. Minha mãe fazia bolo de chocolate e saía pra trabalhar. Passávamos o dia todo juntas. Ela deve continuar linda.

Eles não mentiriam pra mim. Os brothers. Vaca, e o pior é que sinto o sangue dela nas minhas mãos deixando meu pau em riste. Hoje eles vêm cortar a luz. Fodam-se. Tenho que dizer a ela que acredito, mas ninguém pode me ouvir, só ela.

A ferida nunca pára de formigar. Os vermes já estão chegando nos rins, não falta muito pra a agonia terminar. O álbum do casamento não tem data. A lápide vai ser assim também. Quero apagar a luz. Vão cortar a luz!

Não posso ficar aqui sozinho.

Não posso deixar que fique sozinho!

"Alô?!"
"A chave está debaixo do tapete"
"Cortaram a luz?"
"Ainda não.Traz umas cervejas..."

Ela deixou eu chupar a boceta dela. O Chaplin nunca deve ter sentido isso.
Ele apagou a luz. Tomamos todas as cervejas. Todo dia vai ser sempre igual...

Minha Preferida

Uma mulher diferente. Não diferente no modo de se vestir ou no corte de cabelo, que era mesmo uma marca sua. Tinha algo naquela mulher que mexia com os culhões dos homens. Usava meia calça que eu podia ver ser vermelha. Intrigantemente interessante aquela. Uma dona de casa, sem o lenço na cabeça nem o avental, mas uma dona de casa ainda sim. Das melhores.Em dia de feira eu ficava no portão de casa esperando ela passar empurrando aquele carrinho cheio de maçãs, batatas, tomates e sempre uma melancia, pesado o carrinho. A força que usava pra subir a rua, nenhuma ladeira muito salgada, era tão excitante que não me oferecia pra ajudá-la. Esperava o "olá" e voltava pra dentro de casa. Uma bronha pra vizinha.Poucas vezes conversamos, o papo da vizinhança mesmo. "chove?" "melhor levar o guarda chuva!" Quase nada eu sabia daquela dona de casa e isso é que me deixava admirado por ela. As mulheres gostam de serem admiradas, elogiadas, desejadas. ADORAM chorar no outro dia (blah!). Duvido que estejam certas nisso. Mas ela nunca corou com um gracejo meu, talvez nem o tenha percebido. Eu lá no portão esperando sempre por ela, deixando que o suor escorresse pela face no esforço de subir a rua com o carrinho.Já me peguei várias noites sentado com os amigos, bebendo, pensando na meia calça dela. Vermelha com certeza. Só mulheres como ela usam dessa cor. O marido tem uma loja de materiais de construção no centro, fica o dia todo fora. Os dois filhos (o mais velho é afeminado, tá sempre com um amigo que também é afeminado) estudam durante o dia e estão mais preocupados com suas espinhas. Entre amigos vez ou outra eu pensava na minha vizinha. Em casa, sozinho, era foda.Precisava de mais algumas palavras daquela criatura, queria saber mais sobre aquela simples dona de casa. Fiz amizade com o marido dela. Tudo pra chegar até a esposa dele, e quem sabe até aquela boceta, sem vulgaridades, admirava mesmo aquela boceta. Assisti alguns jogos na casa deles no fim de semana. Tomei cerveja (derrubei um pouco no carpete mas ninguém percebeu). O veadinho e o outro filho deles nunca estavam em casa nessas horas. O cachorro parecia o Falcon do História Sem Fim. Devo ter ouvido até algumas palavras mas fingi que não era comigo. Família linda aquela, e ela no meio daqueles desconjuntados ficava ainda mais bela. Meu pau, isso já no meu quarto, reluzia a admiração que eu tinha por aquela mulher diferente. Ela não tinha uma cintura bem feita nem peitos durinhos (o que era uma pena), tinha até uns quilinhos que não se preocupava em esconder, aparentava ter a idade que tinha e isso não a incomodava, mas tinha aquele pudor bem disfarçado e uma dedicação com a família que me deixava noites acordado, eu e ele, meu pau.Na casa deles nunca pude conversar com ela um pouco mais animadamente, mas já tinha em mente como resolver essa questão. O marido, cheio de nove horas, pouco preocupado com a jóia que dormia a seu lado, não se permitia folgas nem dava margens pra falhas no serviço. Se achava algum tipo de empresário bem sucedido do ramo "cimentício".Toquei a campainha na hora que sabia não ter ninguém, só ela. O mesmo sorriso de sempre, com a mesma falta de malicia com minhas desenroladas. Inventei que tinha perdido a carteira e que poderia estar por lá. Doce criatura. Entrei e juntos vasculhamos a sala, nada da minha carteira. Reparei muitos quadros na casa. "você podia me ajudar a decorar minha sala, não tenho gosto pra quadros" "vamos até lá agora pra ver o que dá pra ser". Queria entender esse 'dar' de outra forma.Andou pela minha sala, pequena mas muito agradável, fez observações que nem absorvi. Seu andar era ereto e descontraído. Minhas bolas já estavam doloridas. Fiquei paralisado admirando minha musa (não muito minha aliás). De súbito ela se virou e fixou meus olhos. Me desconcertei com aquilo. Segundos de puro silêncio. Meu coração tava acelerado. Veio na minha direção e senti vontade de correr. Que me deu? Bem perto agora. Deu uma volta em torno daquele homem que se dividia entre assustado e excitado. Passou a língua no meu pescoço e discorreu um olhar carente sobre meu corpo. Até meu pau... parou, apertou minhas bolas que cada vez mais doloridas pediam por aquilo. Beijei os lábios da dona de casa e mordisquei os peitos dela. Estávamos a sós e eu sabia bem que não tinha a menor chance de alguém perceber o que estava preste a acontecer. O maridão era meu amigo. Os moleques estudam pra caralho. Nem quadros nem o Falcon. Eu e a minha vizinha!Nus, o coração dela galopando junto ao meu. Ia comer a boceta tão desejada. É. Ia. Vi aquele corpo na minha cama E um stalo me fez raciocinar tudo. Como poderia esperar o cumprimento na volta da feira depois daquilo? Como admirar a dedicação com os desajustados daquela casa ao lado? E a meia vermelha, onde deixou que não estava usando?Vestiu-se de dona de casa e entrou na casa ao lado com um sorriso nos lábios. Não corou. Não me proibiu aos domingos pra assistir os jogos com o maridão. Cara gente fina esse.Continuou empurrando seu carrinho com maçãs, batatas e sempre uma melancia. Continuei no portão e com minhas bronhas. Meus amigos continuaram bebendo por mulheres comuns. Eu bebendo por ela, minha preferida, a diferente das outras com sua meia calça vermelha. Facínio um tanto esdrúxulo. Não ajudo com o carrinho, ela prefere assim.

mais que ondas am/fm

Ela desce a rua jogando o quadril pros lados com os cabelos despenteados e molhados. Tem uma voz grossa que soma sensualidade com seus joelhos de mulher. A saia sempre bem acima desses joelhos. O decote emoldura os peitinhos mais lindos que já vi. Tem uma corrente que eu dei, com um pingente de coração com uma jade cravada (puta otário). Não tropeça nem perde a elegância sobre o salto.O quartinho alugado tem cheiro de mofo e a janela com seus vidros quebrados dá visão da ruazinha. O matrimonio deveria mesmo ser a tal coisa sublime que o cara disse lá na igreja. Mas o andar daquela menina desmentia qualquer coisa que pudessem chamar de sublime. As mais graciosas bochechas de menina. Minhas bronhas têm sido todas pra ela. Dezenove anos com aquele sorriso infantil que ao mesmo tempo tinha tanta malícia, o que me confundia entre duas imagens que se me apresentavam. Sempre descia a mesma rua com o mesmo requebrado inebriante. Tinha paz apesar de nunca ter dinheiro, não desejava mais que isso, tava feliz assim.O problema aparecia na quarta-feira. Os problemas, aliás. Uma igrejinha no fim da ladeira, uma igreja pequena que não tinha confissionário, as pessoas ali não precisavam disso, de se confessar, saca? Mas na quarta-feira ela não saía do quarto alugado com cheiro de mofo. E quando saía tinha vontade de voltar de súbito e finalmente tirar a lamina do armário pra acabar com as quartas-feira. Gritos, desconjurações, línguas afiadas na boca de senhoras que não precisavam se confessar. Quase um exorcismo, daí excomungavam a menina, toda semana. Mas arranjou um meio menos doloroso de evitar tudo isso. Foda-se o alvoroço das fiéis filhas da puta. Trancou a porta, colocou o travesseiro no ouvido e tentou dormir até que o sol lhe anunciasse a chegada do novo dia, da quinta feira, dia em que caprichava no perfume e descia sua ladeira pra me encontrar.As olheiras desenhavam um rosto mais envelhecido mas que ainda mantinha a ternura de seus dezenove anos. O braço fino carregava a bolsa que trazia tudo quanto tinha na vida. Meu coração acelerava com o toque daqueles lábios no meu pau. O negócio do matrimonio não funcionava com a gente, ela ria quando eu falava sobre. "teu pequeno tem só oito ainda, ela precisa de você e eu preciso da tua grana". Sabia que quando apagasse a luz desejaria sufocar meus soluços. O sono dela é pesado, saio antes do bom dia e isso só faz falta pra mim. Deixo o dinheiro na cadeira e percebo os olhos dela certificando minha generosidade. Não digo nada e fecho a porta.Quando tinha vinte anos de idade meu pai me deu um fusca, preto, eu trabalhava com ele, o meu pai, o fusca ficou sendo meu companheiro, todo mundo sabia quem era o magrelo dono do fusca preto. Achava que a vida era aquilo. Coloquei um rádio no meu fusca, a vida até ali ia de am a fm. Meu pai não sabia mais que isso, eu também não. Entre seu riso debochado e sua mocidade a certeza. Ela sabia - ou sonhava, o que dá no mesmo - que existe mais que isso...Casei num sábado e o cara disse que o matrimônio deveria ser algo sagrado. E era, ali não existia pecado nem confissionário. Hoje com trinta e seis anos e muitos cabelos a menos entre os que já estavam clareando. Três décadas e meia achando que sabia das coisas. Ela ainda sonhando entre páginas de revista me ensinando tudo aquilo que eu nem imaginava mesmo existir.Em casa a atmosfera é pesada demais, o pequeno no seu primeiro ano no colégio germinando suas primeiras lembranças, a mulher com a barriga cada semana maior me olhando da cozinha me jogando um beijo e dilacerando minha alma. Não entendo como fui para naquela poltrona. Não reconheço minha cara infantil naquele pequeno. Não me emociono conforme aquela barriga cresce. Só ela, com seu andar elegante num salto gasto, ela que tapa os ouvidos com o travesseiro com medo de abrir o armário e dessa vez calar o mundo.Ali não existe pecado nem amor. O quarto cheira a mofo e esse é o perfume mais suave que senti. Os vidros se espatifaram contra meus pulsos quando ela disse que tinha um outro horário marcado naquela noite. Os vidros cortaram fundo, a cicatriz desenhou as maçãs do rostinho de menina. Ela carrega a vida na bolsa pendurada no braço fino. Espero na esquina com a garrafa debaixo do braço. O pecado é não desejar aquela buceta, é não esperar sempre por aqueles lábios no meu pau.Minhas bronhas buscam as lembranças do fusca, as bronhas são todas pra ela. Falo daquilo que o cara disse no altar depois de um trago. Saio sem dizer nada e os olhos dela vão do meu rosto as notas sobre a cadeira. Vira pro outro lado e bato de leve a porta. Do lado de fora olho uma última vez pra janela com os vidros estilhaçados. Amanhã ela tranca a porta. Eu fico na esquina pra ver se ela tem coragem de olhar pra fora. Daí eu aceno e baixinho digo, só pra ela, "até amanhã minha putinha!"

Alguém aí sabe cantar aquela música?

O telefone tocou. Eu tava enroscado numa morena com uns cabelos tão compridos que ausentavam qualquer tipo de roupa. O telefone estrangulou a morena e acordei ás duas da manhã sem nenhum humor. Que tipo de filho da mãe que te arranca do seu próprio sonho, deixa a morena lá estrangulada? -Que não espere cordialidade, ah não... "o pai tá fodido cara" Nunca tive muito que lembrar do tempo em que dormia no mesmo quarto que os meus irmãos, quatro crianças no mesmo quartinho, adorava quando a Silvia me contava umas histórias sobre uns homens que apostavam a mãe no pôquer, eu não entendia nada da história, mas ela lia e olhava pra mim com um riso no rosto, piscava na hora que o crime tava quase sendo descoberto e eu piscava de volta como se soubesse o que ia acontecer, ela terminava o capítulo e puxava meu cobertor. Casou com um cara legal, ele não deixa eu visitar, bom pra ela, por isso gostei dele. "é sério cara, o pai tava devendo um dinheiro pra uns caras aí, agora a gente tem que sumir véio". Foram anos estranhos ali naquela casa de quatro cômodos. Ela cozinhava cantando, seu avental sempre bem azul era lindo. No dia que cheguei em casa e vi o avental cheio de sangue caído no chão fiquei parado na porta esperando alguém vir me dizer o que tinha acontecido, correria de um lado ao outro e ninguém, ninguém me dizia nada. Entraram uns homens com umas roupas brancas segurando uma tábua, cada um de um lado, eram dois, entraram no quarto e não levaram o avental. Não teve música durante o jantar. As garrafas caídas na cozinha no meio do sangue, ele também sumiu, só eu não entendia nada ali. "eles vão querer cobrar da gente cara, eu vou pra longe, eu vou pra longe". Uma vez eu entrei numa padaria e pedi um Mallboro, eu tinha idade pra isso, era um homem aos quinze, eu sabia puxar uma fumaça. A filhinha da Silvia se parece comigo, eu vi na foto quando encontrei com a empregada dela por aí, a minha cara. Nunca mais ela cantou na cozinha, jogaram fora as coisas dela, os malditos, nunca mais ela voltou a me esperar na calçada. Achei engraçado colocar uma pessoa numa caixa e esconder ela debaixo da terra, ainda jogavam flores no buraco onde a esconderam, minha mãe. Quando descobri a verdade amaldiçoei todos eles, menos a Silvia e a filhinha dela, todos que sabiam a música que ela cantava. O cara sumiu, voltou depois pra pegar as garrafas, sumiu de novo. "é serio, ele tá cheio de buraco cara, acho que já era". Quando se descobre onde o tal buraco dá, você tem que decidir se vai aprender a música ou se vai ficar ali chorando e jogando flores. Eu aprendi a música. O cara levou as garrafas mas nem olhou pra minha cara quando passou por mim na porta, eu ainda tinha as marcas do cinto dele nas costas, nas pernas, por todo o corpo. Nunca mais me viu, eu sempre estive bem perto dele. O quarto tinha dois beliches. Eu não conseguia subir sozinho a escadinha pro de cima, a Silvia me ajudava (ela deve ajudar a filhinha a subir no bercinho também!) os outros ficavam rindo quase a noite toda e eu não entendia o que eles tinham, do que riam tão calorosamente. Nunca mais os vi. Aprendi a cantar e tenho minhas próprias garrafas agora, são muitas. "você tá me ouvindo? eles tão atrás da gente véio, pô você é nosso irmão cara, tamo junto agora". A morena tinha o olhar tranqüilo, igual o dela, me lembrei de quando a vi chorando sozinha, ela me olhou e disse que isso que dá quando a gente brinca com fogo, não entendi na hora, ela me abraçou e fiquei ali deixando-me nos braços quentinho daquela mulher. O telefone tocou de madrugada e eu nem sei se ainda volto a me enroscar naquela morena. Sentei na cama ouvindo aquela voz que depois de tanto tempo era quase desconhecida. "deixa ele aí e some você, não liga mais aqui, sumam vocês"- minha voz saiu pelos ouvidos e o telefone escorregou da minha mão, bateu no travesseiro, caiu no chão... Andei até a janela, abri e o vento bateu na minha cara, dali eu via o prédio da minha irmã, sempre dava pra ver ela saindo de carro com o marido dela, sujeito bacana. Voltei pra cama e pus o fone no gancho. Tocou de novo. "você tá louco cara? O PAI TA MORRENDO, CARALHO, NOSSO PAI TA MORRENDO" - eu não reconhecia a voz - "eu ouvi, some agora antes deles acharem você também, eu sei que eles vão atrás de você, eu falei pra darem um jeito só nele, mas eles não são tão bonzinhos quanto eu" - "É SEU PAI PORRA, SOU TEU IRMÃO CARA, VOCÊ TÁ LOUCO VÉIO?" ... O telefone caiu de novo e deixei ele no chão, deitei no meu travesseiro suado, sorri pra ela que tava parada na janela com um avental azul, puxei o cobertor pra não ter que pedir que saísse da janela. A morena devia estar puta da vida comigo, mas agora já tava tudo certo e o telefona não ia mais estrangular ninguém. Nunca mais.