Até poderia tentar convencer aqueles garotos que ali o negócio funcionava de outro jeito. Ali não adiantava ter talento, ter banca, saca? A podridão é que administrava o lugar.
Eles eram bons pra caralho, tinham uma puta vontade de ir cada vez mais longe, muitos sonhos e talento, e tinham mesmo. Quatro moleques de calça jeans e tênis velho, cabelo comprido, uns tatuados outros com brinco. Fodões. Ensaiavam as quintas, quando os pais estavam fora até mais tarde. Lá na garagem. Eu trabalhava num boteco no fim da rua 10, esquina com a avenida principal, perto da Igreja. Eles iam lá depois do ensaio e sentavam na mesa perto do balcão. Me contavam sobre como a música tava melhorando e vinham denovo com a história de tocar naquele lugar. Desisti de tentar tirar essa fixação da cabeça deles. Passei a incentivar então. Entrava e saia dali todo tipo de figura. Sabia como as coisas funcionavam. Eles não tinham idéia, mas eu sabia. Tinham como se dar bem noutro canto. Mas não. Iam tocar naquele palco (diziam).Numa quinta feira os pais chegaram cedo e não teve ensaio. Ficaram quase a noite toda no bar, de vez em quando tocavam um pouco lá. O palco pequeno pouco iluminado não deixava que o brilho daqueles moleques ofuscasse. Eram mesmo os Caras!
Fizeram uma música e pediram minha opinião, puta que pariu, o mundo podia acabar que já tava tudo certo, pô que satisfação...
Domingo o bar não abria, o dono ia pra igreja. Pois é. Dia que eu ia lá pro Parque Hugo Chaves, perto da Prefeitura, pra ficar junto deles, sempre assim. Eles de skate, bicicleta, eu de bermuda, cabelo preso. Domingão. Tinham o dom com skate, mas naquela garagem é que eram os moleques que eu admirava. Dú caralho os Caras!
Porra, tinha que dar uma força pra eles, eles me pediam opiniões e eu dava, mas não era só isso.
Entrou no bar com uma vadiazinha pendurada no braço do relógio de ouro, pinta de filho da puta. Sentou e pediu pra me chamar. O dono da cocaína. O de sempre. Começou a bajulação. Cumprimentos e todo tipo de babação. Sempre a mesma porcaria.
Tava ali e tudo que eles precisavam era que alguém chegasse e desse um toque. Eu devia isso pra eles. Pus na cara uma ruga despreocupada. Não foi difícil. "Eles tocam muito, às vezes tão aqui." "Hum... quem sabe... tô precisando mesmo de coisas novas. Manda passarem lá pra eu conhecer os garotos."
Ganhei um banquinho na garagem, camarote. Ensaio detalhado. Eles iam falar com o babaca. Os moleques disseram que eu merecia uma música.Sábado não fui trabalhar (meu tio era o dono do bar). Soltei os cabelos, eles me chamaram pra ir junto. Passaram o som (muito melhor no estúdio). Um outro cara sentado na cadeira, com um óculos de grau, sem o chapéu costumeiro e uma careca adolescente despreocupadamente à mostra. Um outro cara aparentemente, mas o mesmo babaca, sem a vadiazinha. Um silêncio de causar arrepio. Dor de barriga. Ele levantou e entrou na cabine. Deu umas voltas, resmungou umas palavras que não dava pra entender de fora. O aperto de mão! Meu tio faturou aquela noite.Não aconteceram mais ensaios nas quintas-feiras. Não usei mais minha bermuda nem cabelo preso. A mesa perto do balcão agora era ocupada por umas estudantes que me enchiam com sua estórias sobre salões e namoros frustrados. O babaca aparece com a vadiazinha (não a mesma, claro) mas não me chama mais. Tem a Dani trabalhando aqui agora, ela é índia.
Os moleques tão com um cd. Todas as rádios tão disputando os Caras. Vi num programa uma entrevista deles. Mudaram pra São Paulo em março daquele ano. Nem lembro qual dia os vi pela última vez. Bando de filhos da puta que me enchem dessa porra de saudade.
Tocaram algumas vezes por aqui mas não fui nos shows. Tenho uma filha pequena agora. Não casei. Moro com meu tio, o do bar mesmo. O cd deles eu comprei. Mas pro show a grana não deu. É foda. Eles conseguiram tocar lá. Foram longe e tão bem agora. Fiquei feliz pra caralho por eles.Tem uma música deles que conta a história da banda, mas meu nome não ta nessa, nem em nenhuma outra.
Os moleques eram fodões sim. Ainda tô no bar. Minha filha aprendeu a falar mamãe e isso foi demais pra mim. Tem apresentação dos Caras por aqui no mês que vem. Sessenta paus. Não vou. Já vi eles na garagem numa quinta feira e foi muito melhor, no banquinho vip só meu.Eu devia aquela conversa com o babaca pra eles. A vadiazinha ta na capa do cd. Se deram bem, eu não, tô feliz por eles.
Nenhum hits com meu nome. Meu tio ta com uma necrose na perna. Minha filha já me chama de mamãe.
Os caras eram muito bons mesmo. Pena que morreram, os quatro. Mês que vem tem show por esses lados, mas não são os mesmos moleques que sentavam na mesa perto do balcão que vão estar no palco.
Faz muito tempo, mas sem dúvida nenhuma aqueles da garagem poderiam ter formado a melhor das bandas.
Caralho, que saudade!
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