9.4.10

ouvi passos no segundo andar, passos de fuga. passos tão assustados quanto fiquei aqui, embaixo, esperando os gritos ou a polícia. e se vierem armados, fico olhando por trás da cortina, não confio neles. ela quando veio morar aqui não usava vestidos acima dos joelhos, acho que o marido não gostava de discutir com tantos bêbados que se apaixonavam por sua magrinha esposa. eu me apaixonei por ela no segundo exato quando nos cruzamos na porta da frente do prédio, ajudei com umas caixas, ofereci uma bebida no meu quarto e declarei logo que morreria por ela. me chamou de louco, riu do meu choro de bebê e nunca mais nos falamos. hoje ouvi passos mais agitados. costumo me sentar na cadeira no fim da tarde, antes das seis, e no meio do silêncio sepulcral do meu quarto surgem os passos dela, passos que vão até o banheiro pra fazer xixi, imagino sua calcinha úmida, conto seus passos até a cozinha e pelo cheiro, que as vezes invade o meu andar inteiro, sei que ela toma muito café. os banheiros são empilhados nesse prédio, tomamos banho juntos, ela lá em cima nuazinha, ensaboando o corpo pequeno, tão magrinha, tirando meu ar, me fazendo sofrer aqui embaixo, sozinho e pelado, com uma espinha inflamada na nádega. tão adoráveis seus passos até o quarto, o barulho da cama no assoalho, ela se deita antes de se vestir. deve ficar entediada, deve pensar que o marido não gosta dela tanto quanto diz, deve pensar em mim, o vizinho louco que não sabe nada do amor. e fica lá deitada, sem roupa, com a pele trêmula, pensando em quão infeliz está e quanto tédio cabe num apartamento de três cômodos. deve ter se enforcado com o lençol, sem nem ao menos pensar em vestir-se. agora o marido está preocupado com a polícia. ele tem aquela cara de marido, mesmo, deve ter outra família, talvez no interior, um filho de sete anos que joga no time dos moleques do bairro. uma esposa treze anos mais velha e cansada demais pra reclamar sua ausência. paga dois aluguéis e agora vai economizar um bocado, o que vai fazer sua mulher e seus filhos do interior um pouco mais satisfeitos. mas com a polícia a coisa não vai ser tão fácil, eles vão querer saber de tudo, vão vasculhar a casa e vão olhar os bicos dos peitos frios da minha amada debaixo de um lençol, gelada, roxa, com os lábios cerrados. ela não vai poder contar a eles que era infeliz demais ali, que tinha sonhos, que tinha poucos anos, que gostava da andar pelada em sua casa. ela deve agora estar satisfeita, talvez pense um pouco mais no nosso amor agora. não vai ter chance nem de se defender quando um deles, os policiais, perguntarem se estava louca. o marido assustado, com o cú virado pra dentro de tanto medo, vai dizer que não está surpreso, vai falar de médicos, vai chorar aliviado fechando a porta e acertando uns trocados. eu não ouço mais nada agora, e esse silêncio é o pior ruído desse lugar.