23.5.08

Quando eu tinha nove anos as coisas já estavam complicadas. Explico, minhas coleguinhas (é bacana falar assim né), todas da minha idade, todas "curtindo", todas umas safadinhas. No colégio o mais interessante era correr atrás dos meninos e tentar arrancar um beijinho de um deles. Verdade, eram todas umas loucas. Eu não participava muito disso. Verdade. Tinha um medo terrível dos meninos. O que me apavorava era pensar na minha boca colada na boca de algum deles, ou na mão de algum deles muito perto da minha numa situação que não fosse uma briga ou uma brincadeira na rua. Aquelas meninas nem sabiam somar dez mais um e já se enchiam de batom e escreviam cartas cheias de propostas. Aquilo era muito louco pra mim, eu não conseguia entender aquilo. Uma vez, admito, escrevi uma cartinha pra um garoto. Foi na terceira série. Caprichei na letra, passei perfume na folha (que ajudou a borrar toda a tinta da caneta), e no final eu dei um beijo com batom vermelho. É engraçado lembrar disso...
Mas fico pensando que o que acontecia era muito perigoso. E agora tenho certeza disso e me preocupa pensar em tudo isso. Os meninos na época queriam saber de sacanear um ao outro, de pular muro, de jogar futebol, de "brincar de mão", de tirar uma com as meninas. Mas nenhum queria saber de beijos e abraços e cartas melosas. Eram apenas moleques e se divertiam pra caralho assim. As meninas ficavam lá preocupadas com coisas que hoje ainda não me preocupam tanto. Aos noves anos eu tinha o joelho direito todo estourado e tava cheia de cicatrizes nas pernas e nos braços. Meus cabelos estavam sempre embaraçados e eu vivia pegando piolhos na escola. Era quase um moleque perto das outras meninas. Me diverti tanto, briguei na rua, tocava a campainha das casas e saía correndo. Via, e mesmo sem sacar plenamente o que tava acontecendo, a tristeza daquelas garotas que tinham preocupações demais para seus diários. Perdiam as mais sensacionais aventuras pra não estragarem suas sapatilhas. Deixavam de tomar banho de chuva pra não estragar os vestidos e os penteados com presilhas e acessórios coloridos.
Minha infância foi muito bacana, muito! Eu brincava com meus irmãos, dois meninos, quase o dia todo e na escola eu tinha mais uma porção de amigos, moleques, e as meninas sempre me botavam em frias e me chateavam. Queria que elas participassem das nossas brincadeiras. Queria que elas soubessem o quanto era divertido correr pelos quarteirões do bairro pra deixar o esconde-esconde mais complicado. Queria entender porque elas falavam de coisas que faltavam tanto tempo...
O que eu quero dizer é que acho perigoso o que acontece com essas meninas. Porque elas deixam de ser criança. Elas começam a sofrer mais cedo. Muito cedo. O sofrimento começa sutil, quase imperceptível. Dúvidas, medos, paixões e depois as dores. Pros moleques o tempo encaixa. E eles acabam ficando pra trás, o que só os favorece, o que os livra de traumas.
Hoje, eu conversei com uma garotinha e ela me disse que estava com um problemão. Eu quis saber qual era seu problemão. "é que o Marcos, o menino mais bonito da minha classe, me chamou de baleia, e todos os outros garotos começaram a rir de mim" isso eu já tinha sentido na pele, tentei fazê-la entender alguma coisa do que tinha acontecido "sabe, os meninos dizem coisas assim pra te irritar, se você der bola eles não param nunca, se entrar na gozação eles desistem de você e vão perseguir outra pessoa"... "eu falei pra minha mãe que a partir de agora eu só vou comer um pouquinho, e nada de doces, porque eu não quero ser uma baleia, nunca, eu quero namorar".
Me assusta esse tipo de conversa. Não tenho filhos, portanto não tenho ninguém dependendo exclusivamente de mim. Alívio. O que eu disse pra essa garotinha não passou nem pelo ouvido da pequena. E ela vai sofrer, desde já. E isso nunca vai parar, porque ela vai crescendo e tudo isso vai aumentando.
Tenho medo da infância porque ela não é bacana com todo mundo, às vezes ela sacaneia e deixa marcas que vão estragar tudo pela frente. Mas eu me lembrei da cartinha que eu escrevi pra um garoto na terceira série e achei tão engraçado. Queria saber o que estava escrito no meio daquele perfume charisma da minha avó. Mas eu não lembro dessa parte, só tenho algo antes dos primeiros vergões na canela.

20.5.08

Em Obras

Eu deixei essa casa vazia por uns dias. Sinto falta das conversas na sala depois do almoço. Não é falta de tempo não, ele até sobra pelas beiradas de vez em quando. Mas falta espaço, paciência, silêncio. Falta um computador e internet em casa. Moro com meus pais, irmãos, uma cadela sem vergonha, é difícil fazer minhas coisas por lá. No trampo o tempo que sobra não rende muita coisa. Tenho lido bastante, estou me organizando, escrevo algumas coisas num caderno que guardo debaixo do colchão. Ainda me emociono com as tirinhas da Mafaldinha! Ainda tentando me controlar na coca-cola. Tenho arriscado na cozinha, e acho que estou aprendendo. Tá, não sei fazer panquecas nem pudim de leite, mas tô aprendendo.
A casa está em reforma, acho que vou botar umas luminárias novas e dar um tapa na pintura.
Faço uma festança quando tudo estiver em ordem, prometo.

19.5.08

Querida L. (de Letícia),


eu segurei sua mão na primeira vez que andou numa roda gigante lembra? Sentamos um ao lado do outro e quando estávamos lá no alto eu segurei sua mão e botei em cima da minha calça. Você perguntou porque "ele" ficava daquele jeito e eu disse que isso era o amor. Ah, que beijo suave você me deu naquela noite.

No primeiro dia do nosso namoro eu pedi que tirasse a blusa, faltavam duas horas pro seu pai chegar do trabalho e você me apresentaria pra ele. Sua blusa tinha cinco pequenos botões, lembra? Você estava tremendo e pediu que eu fosse rápido, olhasse e me afastasse. Mas não podia negar que eu te deixava feliz. Encostei meus lábios e você deixou os botões de lado e quase não ouvimos seu pai estacionar. Quando você cuspiu debaixo da almofada do sofá eu tive a certeza que te amaria pro resto da vida.

Menina, ainda a vejo com seus dezesseis anos, subindo a escada do prédio com ses vestidos esvoaçantes. Eu lá do outro lado, despejando toda minha paixão em latas de refrigerante vazias.

Se ainda fôssemos jovens talvez você entedria melhor onde quero chegar.

Vi que engordou um pouco. No supermercado, na fila do caixa, eu estava perto de você e vi que sua cintura cresceu. Seus olhos também estavam diferentes, mas preferi me prender ao seu corpo, que agora é só uma moldura triste do que imaginei pro resto da vida. Aquela menina que segurava seu braço tem os mesmos cabelos que você, e seu perfume se aproximou de mim.

L. (que já não é um anonimato), ainda guardo seus bilhetes. Sua letra infantil e sua escrita confusa. Desenhos e flechas e nossos nomes juntos.

Tudo foi maravilhoso querida. Um mês inesquecível pra mim. Com certeza pra você também.

O que acontece depois foi uma grande bobagem, ainda não entendo porque chorou tanto. Sua irmã me contou que ficou dias sem comer. E enquanto você sofria sua adolescência ela me fazia companhia, e nos divertíamos. Mas respeitei você sim. Jamais amei outra mulher depois e você. Aquelas suas amigas apareciam a noite, nos divertíamos e era só isso. Nenhuma mulher desconhecida por você entrava na minha casa depois das vinte e uma.

Primeiro as apresentações. Marta, que vendia produtos cosméticos pras amigas no salão. Catarina, manicure das mais procuradas que atende na terça e na quinta-feira no salão da Fátima, mesmo salão onde Marta vendia seus batons. Fátima é irmão de Lúcia, que nasceu Vitor e viveu parte da adolescência tentando não pensar nos paus dos amigos. Agora, um pouco da confusão. Salão de cabeleireiro, lugar perfeito pra articular um crime. Explico: a quantidade de mulheres reunidas. As revistas do anos passados estratégicamente equilibradas numa mesa dessas de vidro, altura de anão, perna quebrada. A confusão: as três personagens e meia até então eram amigas. Mas como todo mundo sabe mulher em salão de beleza não quer outra coisa além de spray, acetona e encrenca. Amizade mesmo só conheço de mesa de bar. Marta é casada com o ex-marido de Fátima. Catarina é mãe de Johnny, que namora Lúcia, que era Vitor e é irmão da Fátima. O pai de Fátima casou-se com Catarina dois meses depois que sua mãe morreu de um aneurisma. O irmão que agora é irmã veio exatos nove meses depois da morte de sua mãe. Todas guardam seus segredos a sete chaves, cada chave de uma sala de no mínimo duas dúzias de clientes satisfeitas. Como eu sei de todos os detalhes? Trabalho pra prefeitura, uma vez por mês tenho que visitar o salão. Rotina, duas horas e alguns biscoitos de leite com coca-cola que nunca faltam. É como se eu fosse até lá pra uma sessão de análise. Nunca em grupo por conta dos segredos e coisas assim.
Sempre fui indulgente. Nas mais impossíveis situações tive que olhar pro outro lado. Aquele menos sujo que demora mais pra doer. E quando digo que as situãções foram impossíveis falo por mim, do que tenho aqui e não suporto. A falha, e já não sou a única, é que com o tempo as desculpas não cabem nos buracos cavados. Ficamos alanceados com o que vai restando de nós, ali caído, sozinho. Os indulgentes sofrem, talvez mais, porque o mais dificil (para sempre e com fé) é perdoar suas próprias faltas e abandonar seus erros, que voltam sempre e nunca páram. Comigo é assim, na maior parte da vida.