17.3.08

Alguém aí sabe cantar aquela música?

O telefone tocou. Eu tava enroscado numa morena com uns cabelos tão compridos que ausentavam qualquer tipo de roupa. O telefone estrangulou a morena e acordei ás duas da manhã sem nenhum humor. Que tipo de filho da mãe que te arranca do seu próprio sonho, deixa a morena lá estrangulada? -Que não espere cordialidade, ah não... "o pai tá fodido cara" Nunca tive muito que lembrar do tempo em que dormia no mesmo quarto que os meus irmãos, quatro crianças no mesmo quartinho, adorava quando a Silvia me contava umas histórias sobre uns homens que apostavam a mãe no pôquer, eu não entendia nada da história, mas ela lia e olhava pra mim com um riso no rosto, piscava na hora que o crime tava quase sendo descoberto e eu piscava de volta como se soubesse o que ia acontecer, ela terminava o capítulo e puxava meu cobertor. Casou com um cara legal, ele não deixa eu visitar, bom pra ela, por isso gostei dele. "é sério cara, o pai tava devendo um dinheiro pra uns caras aí, agora a gente tem que sumir véio". Foram anos estranhos ali naquela casa de quatro cômodos. Ela cozinhava cantando, seu avental sempre bem azul era lindo. No dia que cheguei em casa e vi o avental cheio de sangue caído no chão fiquei parado na porta esperando alguém vir me dizer o que tinha acontecido, correria de um lado ao outro e ninguém, ninguém me dizia nada. Entraram uns homens com umas roupas brancas segurando uma tábua, cada um de um lado, eram dois, entraram no quarto e não levaram o avental. Não teve música durante o jantar. As garrafas caídas na cozinha no meio do sangue, ele também sumiu, só eu não entendia nada ali. "eles vão querer cobrar da gente cara, eu vou pra longe, eu vou pra longe". Uma vez eu entrei numa padaria e pedi um Mallboro, eu tinha idade pra isso, era um homem aos quinze, eu sabia puxar uma fumaça. A filhinha da Silvia se parece comigo, eu vi na foto quando encontrei com a empregada dela por aí, a minha cara. Nunca mais ela cantou na cozinha, jogaram fora as coisas dela, os malditos, nunca mais ela voltou a me esperar na calçada. Achei engraçado colocar uma pessoa numa caixa e esconder ela debaixo da terra, ainda jogavam flores no buraco onde a esconderam, minha mãe. Quando descobri a verdade amaldiçoei todos eles, menos a Silvia e a filhinha dela, todos que sabiam a música que ela cantava. O cara sumiu, voltou depois pra pegar as garrafas, sumiu de novo. "é serio, ele tá cheio de buraco cara, acho que já era". Quando se descobre onde o tal buraco dá, você tem que decidir se vai aprender a música ou se vai ficar ali chorando e jogando flores. Eu aprendi a música. O cara levou as garrafas mas nem olhou pra minha cara quando passou por mim na porta, eu ainda tinha as marcas do cinto dele nas costas, nas pernas, por todo o corpo. Nunca mais me viu, eu sempre estive bem perto dele. O quarto tinha dois beliches. Eu não conseguia subir sozinho a escadinha pro de cima, a Silvia me ajudava (ela deve ajudar a filhinha a subir no bercinho também!) os outros ficavam rindo quase a noite toda e eu não entendia o que eles tinham, do que riam tão calorosamente. Nunca mais os vi. Aprendi a cantar e tenho minhas próprias garrafas agora, são muitas. "você tá me ouvindo? eles tão atrás da gente véio, pô você é nosso irmão cara, tamo junto agora". A morena tinha o olhar tranqüilo, igual o dela, me lembrei de quando a vi chorando sozinha, ela me olhou e disse que isso que dá quando a gente brinca com fogo, não entendi na hora, ela me abraçou e fiquei ali deixando-me nos braços quentinho daquela mulher. O telefone tocou de madrugada e eu nem sei se ainda volto a me enroscar naquela morena. Sentei na cama ouvindo aquela voz que depois de tanto tempo era quase desconhecida. "deixa ele aí e some você, não liga mais aqui, sumam vocês"- minha voz saiu pelos ouvidos e o telefone escorregou da minha mão, bateu no travesseiro, caiu no chão... Andei até a janela, abri e o vento bateu na minha cara, dali eu via o prédio da minha irmã, sempre dava pra ver ela saindo de carro com o marido dela, sujeito bacana. Voltei pra cama e pus o fone no gancho. Tocou de novo. "você tá louco cara? O PAI TA MORRENDO, CARALHO, NOSSO PAI TA MORRENDO" - eu não reconhecia a voz - "eu ouvi, some agora antes deles acharem você também, eu sei que eles vão atrás de você, eu falei pra darem um jeito só nele, mas eles não são tão bonzinhos quanto eu" - "É SEU PAI PORRA, SOU TEU IRMÃO CARA, VOCÊ TÁ LOUCO VÉIO?" ... O telefone caiu de novo e deixei ele no chão, deitei no meu travesseiro suado, sorri pra ela que tava parada na janela com um avental azul, puxei o cobertor pra não ter que pedir que saísse da janela. A morena devia estar puta da vida comigo, mas agora já tava tudo certo e o telefona não ia mais estrangular ninguém. Nunca mais.

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