17.3.08
mais que ondas am/fm
Ela desce a rua jogando o quadril pros lados com os cabelos despenteados e molhados. Tem uma voz grossa que soma sensualidade com seus joelhos de mulher. A saia sempre bem acima desses joelhos. O decote emoldura os peitinhos mais lindos que já vi. Tem uma corrente que eu dei, com um pingente de coração com uma jade cravada (puta otário). Não tropeça nem perde a elegância sobre o salto.O quartinho alugado tem cheiro de mofo e a janela com seus vidros quebrados dá visão da ruazinha. O matrimonio deveria mesmo ser a tal coisa sublime que o cara disse lá na igreja. Mas o andar daquela menina desmentia qualquer coisa que pudessem chamar de sublime. As mais graciosas bochechas de menina. Minhas bronhas têm sido todas pra ela. Dezenove anos com aquele sorriso infantil que ao mesmo tempo tinha tanta malícia, o que me confundia entre duas imagens que se me apresentavam. Sempre descia a mesma rua com o mesmo requebrado inebriante. Tinha paz apesar de nunca ter dinheiro, não desejava mais que isso, tava feliz assim.O problema aparecia na quarta-feira. Os problemas, aliás. Uma igrejinha no fim da ladeira, uma igreja pequena que não tinha confissionário, as pessoas ali não precisavam disso, de se confessar, saca? Mas na quarta-feira ela não saía do quarto alugado com cheiro de mofo. E quando saía tinha vontade de voltar de súbito e finalmente tirar a lamina do armário pra acabar com as quartas-feira. Gritos, desconjurações, línguas afiadas na boca de senhoras que não precisavam se confessar. Quase um exorcismo, daí excomungavam a menina, toda semana. Mas arranjou um meio menos doloroso de evitar tudo isso. Foda-se o alvoroço das fiéis filhas da puta. Trancou a porta, colocou o travesseiro no ouvido e tentou dormir até que o sol lhe anunciasse a chegada do novo dia, da quinta feira, dia em que caprichava no perfume e descia sua ladeira pra me encontrar.As olheiras desenhavam um rosto mais envelhecido mas que ainda mantinha a ternura de seus dezenove anos. O braço fino carregava a bolsa que trazia tudo quanto tinha na vida. Meu coração acelerava com o toque daqueles lábios no meu pau. O negócio do matrimonio não funcionava com a gente, ela ria quando eu falava sobre. "teu pequeno tem só oito ainda, ela precisa de você e eu preciso da tua grana". Sabia que quando apagasse a luz desejaria sufocar meus soluços. O sono dela é pesado, saio antes do bom dia e isso só faz falta pra mim. Deixo o dinheiro na cadeira e percebo os olhos dela certificando minha generosidade. Não digo nada e fecho a porta.Quando tinha vinte anos de idade meu pai me deu um fusca, preto, eu trabalhava com ele, o meu pai, o fusca ficou sendo meu companheiro, todo mundo sabia quem era o magrelo dono do fusca preto. Achava que a vida era aquilo. Coloquei um rádio no meu fusca, a vida até ali ia de am a fm. Meu pai não sabia mais que isso, eu também não. Entre seu riso debochado e sua mocidade a certeza. Ela sabia - ou sonhava, o que dá no mesmo - que existe mais que isso...Casei num sábado e o cara disse que o matrimônio deveria ser algo sagrado. E era, ali não existia pecado nem confissionário. Hoje com trinta e seis anos e muitos cabelos a menos entre os que já estavam clareando. Três décadas e meia achando que sabia das coisas. Ela ainda sonhando entre páginas de revista me ensinando tudo aquilo que eu nem imaginava mesmo existir.Em casa a atmosfera é pesada demais, o pequeno no seu primeiro ano no colégio germinando suas primeiras lembranças, a mulher com a barriga cada semana maior me olhando da cozinha me jogando um beijo e dilacerando minha alma. Não entendo como fui para naquela poltrona. Não reconheço minha cara infantil naquele pequeno. Não me emociono conforme aquela barriga cresce. Só ela, com seu andar elegante num salto gasto, ela que tapa os ouvidos com o travesseiro com medo de abrir o armário e dessa vez calar o mundo.Ali não existe pecado nem amor. O quarto cheira a mofo e esse é o perfume mais suave que senti. Os vidros se espatifaram contra meus pulsos quando ela disse que tinha um outro horário marcado naquela noite. Os vidros cortaram fundo, a cicatriz desenhou as maçãs do rostinho de menina. Ela carrega a vida na bolsa pendurada no braço fino. Espero na esquina com a garrafa debaixo do braço. O pecado é não desejar aquela buceta, é não esperar sempre por aqueles lábios no meu pau.Minhas bronhas buscam as lembranças do fusca, as bronhas são todas pra ela. Falo daquilo que o cara disse no altar depois de um trago. Saio sem dizer nada e os olhos dela vão do meu rosto as notas sobre a cadeira. Vira pro outro lado e bato de leve a porta. Do lado de fora olho uma última vez pra janela com os vidros estilhaçados. Amanhã ela tranca a porta. Eu fico na esquina pra ver se ela tem coragem de olhar pra fora. Daí eu aceno e baixinho digo, só pra ela, "até amanhã minha putinha!"
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