4.8.08

[o Zeca entrou na minha casa como das outras vezes, descalço e sem me olhar muito nos olhos]
Ainda gosto de olhar mulheres fumando nuas. O barato é ver a brasa queimando, despindo o cigarro a cada tragada. As mulheres não costumam falar do que gostam, nem todas mas muitas, do que querem e como querem. Como, por exemplo, pedir pizza sem orégano. Coisas que só importam pra nós mesmos.
[nos conhecemos ha muito tempo, mas até hoje não consigo entender quase nada do que ele me diz, e mais estranho ainda é que nunca diz muita coisa e nos entendemos assim]
Comprei doze caixas daquele cereal. Eu não como, mas gosto de abrir o armário e ver que elas estão lá e organizadamente do meu jeito. Quando você telefonou eu estava no mercado comprando isso aí, e só ouvi seu recado na secretária eletrônica agora e você já está aqui. Ainda estou botando as coisas no lugar. Vê, tenho mais almofadas que o necessário, a gente sempre tem muito daquilo que não precisa.
[um passo largo primeiro, dois mais curtos até parar de costas, e virando lentamente sem mover o resto do corpo, ele chegou perto do bar da sala e ficou encarando minhas garrafas]
Talvez se bebermos todo esse wisk... como quando aconteceu... Sabia que você é o único amigo que tenho na vida? Verdade. Não sei nem como é sua voz, lembro de poucas palavras, mas você sempre esteve aqui, ou em qualquer lugar, e sempre caminhou desse jeito aí, um passo largo, dois mais curtos e uma virada quase imóvel pra sacar qualquer coisa.
[os olhos iam de rótulo em rótulo, de garrafa em garrafa, passou o dedo em duas taças, acho que me oferecia um drinque]
Saúde! Penso que todo mundo deveria beber algo como isso. O mundo ficaria bem menos chato se todos fôssemos bêbados.
[sua boca moveu-se, como uma risada, foi coisa rápida quase imperceptível, se eu não o conhecesse acharia que foi ilusão minha]
Ouve? É por isso que me mudei pra esta casa. Latidos durante toda a madrugada, é só isso que eu ainda suporto. Você trouxe cigarros?
[absorto com as garrafas enfiou a mão no bolso, mexeu por alguns segundos, tirou o maço e me alcançou um cigarro, em seguida me estendeu o isqueiro, ele também acendeu um]
Quer que eu tire a roupa agora? Enquanto fumo?
[seus olhos entraram dentro dos meus, alguma coisa o tinha incomodado, pegou dois copos e me serviu um dose agora]
Sabe aquele ruído que o dedo tira da taça se o passarmos em círculo, assim, esse ruído é constrangedor.
[viramos, os dois, os dois copos, ninguém falou mais nada]
...
Desejo é isso? Ficar aqui pensando sem descanso, lembrando frases? Não, não é isso. É ir até lá e ficar lá até que tudo fique bem.
Podemos acabar com mais uma garrafa. Se você quiser, pode dormir aqui.
[uma vez ele me perguntou se eu conhecia algo pior que o amor, ele quase nunca falava e quando isso acontecia era eu quem estava ali, eu não respondi, ele entendeu que era pra sempre]
Estou bem, me curando de mais uma gripe, os ataques agora vem em espaços mais longos. Outro dia quase telefonei pra você, pra contar da mudança. Vou pra Austrália na semana que vem.
Ouve? Nenhum barulho além dos latidos.
[Zeca não é só o meu melhor amigo, o meu irmão de coração, não, o Zeca sabe que sempre vai poder vir até a minha casa e ficar correndo os olhos por copos, garrafas e almofadas. Sossegado]
O que é isso no seu braço? Outra ex-mulher boa demais? Exatamente por isso que prefiro beber o tempo todo, as companhias não têm me feito muito bem.
[sabemos que a conversa não vai além disso, colocamos um disco pra rodar, dessa vez o sorriso aparece quando a música invade a sala, esse sorriso eu conheço, então começo a tirar minha roupa]

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