27.3.08

na última consulta do ano (passado)

-Ah Luciana, eu gostei de você, da sua paciência e do seu "entendo, entendo" comigo.
Eu não queria ter me atrasado no sábado, não mesmo eu juro. Eu minto Luciana, isso é tão perigoso né. Sabe, eu não sabia que aquela ônibus rodava metade da cidade de São Paulo pra então chegar até a Vila Mariana. E eu liguei, uma senhora boazinha me atendeu. Mas você tem uma vida paralela a isso né Luciana. Uma vida sem tantos pontos de interrogação da cabeça da Paula. Eu contei até quinhentos e recontei de trás pra frente duas vezes, mas isso não pude te contar porque você tinha que sair 'voando' e eu estava exatos sessenta minutos atrasada.
Acho que é pra isso que nos dão horários, pra nos atrasarmos e nos sentirmos responsáveis por isso. Mas você sabe o tamanho dessa cidade. Impossível cumprir certos horários. No sábado é pior, pelo menos até a Vila Mariana. Não, eu não tomei mais remédios pra dor de cabeça, eu tentei esquecer a dor, mas ela nunca pára. Aquele dia foi ótimo, você não disse nada pra mim e eu fui te contando tudo que eu não contava pra ninguém. E eu só sei que seu nome é Luciana. Você é casada? Você gosta de crianças? Tem filhos? Vai clinicar onde ano que vem? Mas você não vai me dizer essas coisas, eu que vim até aqui pra falar. Ok. Não te disse da suzi. Ela morreu há seis anos. Ataque no coração. A suzi era uma vira-lata boazinha, não mordia ninguém. Mas ela morreu Luciana. Vou passar o Natal na casa da minha avó, e ela faz salada de grão de bico com bacalhau. Você nunca comeu isso, né?
Eu não consigo parar de pensar na mesma coisa, você me disse que meu problema começava aí, porque eu fico o tempo todo comungando as mesmas porcarias. Você já sentiu o peito doer de saudade? Eu sinto alguma coisa aqui dentro, espremida, derretendo e se espalhando. Mas o veneno que eu contraí é lento, vai devagarzinho. Te contei dos remédios que eu tomei pra dormir? É, você brigou comigo. Você gostou de mim, eu sei disso. Porque você me ligou e perguntou se estava tudo bem, e não perguntou dos problemas, quis saber se eu ainda tinha vontade de conversar com você. Acho que não posso fazer isso. Acho que eu tô destruindo tudo, e eu não quero mais fazer isso. Mas eu começo a sair deste corpo e me vejo rindo ao lado dele, esse corpo que é meu, pra onde não consigo voltar nessas horas.
Parece mentira, eu sei.
Tá certo, vou ponderar minhas atitudes. Você tem toda razão, é por isso que venho aqui falar com você. E você sabe que eu não teria coragem de acabar com tudo, de cortar as veias e deixar pra outra vida meus problemas.
Trouxe as fotos, mas é melhor você olhar outra hora, quando eu estiver longe. Melhor assim, tá Luciana.
O horário tá no fim, certo. Semana que vem não venho aqui, tenho umas coisas pra fazer, e você vai estar de férias. Então olha essas fotos depois que eu sair e me telefona dizendo se a coisa é grave, porque eu acho que é.E sobre essas coisas que te disse, eu não sei de onde as tirei.

Novembro/2007

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