28.2.09

Eu queria que todas as palavras viessem pra essa tela com a mesma força que entram na minha cabeça, no coração. Elas me atropelam, encharcam minha vista e me trazem medos que talvez nem sejam meus. Nesse exato momento elas fugiram, assim como a noite que se escondeu de mim, nesse exato momento. Eu vejo do alto os carros passando, pessoas trocando suas casas pelas calçadas num sábado que começa sem garoa. Essas pessoas não podem me encarar de perto agora, elas nem imaginam que aqui falo sobre elas e sobre suas vidas. Isso é estranho, pois eu posso falar de algumas mulheres que estão saindo de suas camas preocupadas demais pra olhar pro lado, pra encarar quem dorme ali ao lado, ou pra abraçar e brigar com quem elas gostariam que ali estivesse. Posso descrever aquele homem que acabou de chegar cansado com pouco dinheiro, que passa pelo quarto dos filhos e sorri quando vê que um deles ainda não chegou. Posso falar do porteiro do prédio que troca de turno e veste a camiseta do seu time. Hoje tem jogo de futebol. Posso falar dessa casa com carpete e de como é insano olhar pra dentro dos apartamentos no prédio da frente, ver a sala pequena, o quarto mal iluminado, dois homens na janela do meio , duas moças e uma senhora na janela da direita, alguns brinquedos espalhados na varanda pequena mais abaixo.
Todas as minhas palavras se foram, agora mesmo eu as tinha aqui bem perto, mas elas disputavam o ar com meus pulmões e eu as expulsei, eu disse coisas horríveis que ninguém nunca vai saber. Por dez minutos eu poderia explicar o que é o amanhecer, quando a temperatura cai e as nuvens se espalham, daí a noite sai correndo sacodindo uma risada frouxa que eu não consigo esquecer.
Parte de cidade acorda e o sol vai começando a aparecer, primeiro se enfiando pela janela incomodando um pouco, e ele entra, entra dentro da gente e começa um dia novo, novinho, sem perguntar nada, sem se importar com o que você está querendo, pensando, bebendo, ele entra dentro de você fazendo uma festinha sacana, assim sorrateiro. E ninguém percebe.
Queria que ele me perguntasse algo antes de me invadir ou de me queimar minha pele. Mas eu não saberia o que responder porque nenhuma palavra me sobrou da noite tão próxima que acabou, e logo vem outra, e eu com novas palavras e essa dor filha da mãe que mesmo que eu mande embora, que eu chute, esporre, expulse, essa dor filha da mãe que fica. Ela enamora a noite, ela se enamora com o sol e com o barulho do transito, ela tá sempre aqui e eu só queria mesmo era saber como falar dela, sem beleza nenhuma, só queria saber explicar cada pedacinho dessa filha da mãe que entra fundo aqui dentro pra fazer festa, e faz mesmo.

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