Acontece quando cê não desfaz um laço
Fica ali parado, vivendo seus pesadelos letargicamente. Tem um olho a mais que conseguiu numa dessas esquinas onde se aprende a viver. Não viveu. Na verdade ele não vive. Fica ali recostado no seu covarde desejo de des-existir. Ele é um bosta, gosta disso. Não se permite uma bronha. Ele não. Acredita no amor e em toda a encrenca que vem junto nesse mixto de babaquices e choraminguações. Tem um terno cinza com uns botões afeminados, usa aos domingos, mas não vai à missas. Tipinho cretino e displicente. Macho sem pinto. Puta dum trouxa que não come boceta. Não porque não gosta mas o caso é que ele é muito certinho pra isso. Eu me pergunto; como se é certinho pra comer uma boceta? ou pra não comer uma?
Entro no carro (que não é meu!) e o som no talo me faz não olhar pra calçada do lado e ver a cara de cú dele. Aí ele acena, grita, levanta na ponta dos pés... diz bom dia e eu mando tomar no cú sem abaixar os vidros... giro o dial com dedos nervosos, e na caixa o volume mais alto possível.
Vidinha de merda essa dele. Mora sozinho e tem um bassê com toquinho de rabo, se parecem as bichinhas.
Já pensei em ajudar o coitado. Não devia ser tão difícil. Mas não deu, eu não dei, ficou assim. Deixo sem jeito: "Cê gosta que chupar um grelo?" Derruba o controle da tv e tenta enfiar a cabeça no chão. Aí não deu certo. Tava disposta dar uma força pro cara. Sou gente boa. Mas ele não chupa um grelo.
Acorda às sete e meia. Toma seu Nescau com leite b às oito. O bassê lambe o sapato dele às oito e meia. Nove horas e ele tá lá acenando pra mim. Não tem pinto o coitado.
Minha mente sequelada não me poupou a repugnante lembrança do dia dos namorados de 98. Caralho. Veio na minha direção com uma caixinha verde de laço roxo delicadamente ajeitado. Olhou pros lados pra ter certeza de que era mesmo seguro caminhar até ali, suava frio e seu olho esquerdo tremia irritantemente. Fingi não entender o que estava pra acontecer (mas se tivesse arrotado na hora certa podia ter evitado essa agonia que me persegue e puxa minha perna quando tento correr). Me entregou a caixinha que nem me dei o trabalho de agradecer. Isso foi na sexta. Na segunda trazia aquela marquinha arroxeada no pescoço e o "OI" apaixonado e agradecido de uma foda domingueira não foi pra ele. Três olhos. Esse último apareceu numa segunda feira. Tentei ajudar ainda, mas ele não chupa mais um grelo. Gosta de dar tchauzinho na ponta dos pés.
Não tinha problema nenhum na vida aí não quis abrir a tal caixinha (e as pernas?) pois que começou minha angustiante fuga. Uma aspirina por gentileza! Certas reminiscências cutucam a ferida que ficou. Quanto blábláblá...
Eis a questão: o cara é um mala e me culpa por não ter sido o autor da marquinha roxeada da segunda feira, só porque fez um laço de fita roxa impecável.
Sem acenos e sem um terceiro olho inquisidor filho da puta. Saio agora às oito e quarenta e cinco sem ter que tomar aspirinas. Quase nove anos. Quase três mil duzentos e oitenta e cinco dias de bronhas não batidas e grelos intactos.
O bassê ta batizado de Doca. Ele, Maurício. O carro já devolvi pro meu irmão. Oito e quarenta e cinco e um copo de iogurte natural azedo pra cacete.
Desfiz o laço roxo e botei a fita em cima da geladeira enrolada no pingüim. Hoje tem corrida no jóquei. Não tenho dinheiro pra apostar, mas bebo no copo dos meus amigos, ele vai ficar atrás da cortina me esperando sair com minha saia de couro e meu salto 15 gasto de asfalto. Vai apagar a luz e fechar os olhos, os três. Uma última bronha. O laço ainda intacto. E nunca mais vou precisar de aspirinas.
Paula Klaus
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