2.4.08

Estava no trem encostada perto da porta e bem próxima de duas mulheres. Elas conversavam alto e isso me incomodou um pouco. Outras pessoas conversavam alto e isso me incomodava ainda mais. As duas que tagarelavam perto de onde eu tentava me fazer invisível, falavam sobre um caso que vi no jornal, sobre a morte de uma menina que pode ter sido atirada do prédio pelo pai. Logo, uma delas começou a falar da morte de um garoto que foi seu vizinho (devo confessar que a essa altura eu já estava prestando atenção na conversa. minhas consultas, o extrato da conta corrente e o chaveiro ficaram esperando um pouco mais de silêncio). O garoto tinha dezesseis anos de idade, estudava desde bem pequeno em colégios religiosos, até a primeira série estudou em uma escola católica numa sala só de meninos, da primeira séria em diante frequentava um colégio adventista. Super rigoroso segundo a narradora. Os pais tinham vida bacana, dinheiro nunca faltou. Tinha uma irmã bem mais nova que fazia aula de canto com o coral da igreja adventista. A mãe teve um problema de saúde e depois que começou a frequentar os cultos ficou boa. Assim, derrepente. E todo mundo pirou. Até a irmã mais nova que achou ser um dom divino a voz melodiosa, passando a se enterrar cada vez mais naquilo. O garoto, que ouvi o nome também, Tiago, nunca gostou de nada disso. Dos colégios, da loucura dos pais, da obssessão da irmã. O moleque se matou, tomou um puta coquetel de veneno, remédios e drogas. Deixou uma carta pros pais pedindo que não cometessem com a menina, a irmãzinha, o mesmo erro. A mulher que contava tudo isso ainda disse que ele usou essas palavras "chega de assassinatos, amo vocês". Elas falaram da inveja que brotava. Inveja da casa, da condição financeira daquela família, da voz da pequena menina. "o pai do Tiago é um homem bonito, mesmo com aquelas enormes olheiras" Eu, ali prestando atenção numa conversa que nem me interessava muito, bêbada de sono, tentando me equilibrar num sapato impossível e elas dividindo suas invejas. Também senti uma ponta de inveja, uma inveja leve e quase amorosa. Aquele garoto teve que ter coragem, o que algumas pessoas podem chamar de covardia no caso de um suicídio. Invejei a atitude dele, de tentar salvar a irmã daquilo que ele já conhecia. De não ter ódio apesar de tudo daqueles que o fizeram crescer entre crenças que nem eles, que as impunham, acreditavam. De não sentir falta do que podia comprar. Porque ninguém entende.

Eu não consegui prestar atenção em mais nada dentro daquele trem, eu saí dali antes mesmo do vagão parar na estação.

Meus dentes continuavam pedindo atenção, precisava passar no banco antes de chegar no trabalho e ainda tinha o chaveiro. Percebi que as coisas são piores pra gente de qualquer maneira. É isso que queremos. Mas fiquei pensando por muitas horas naquele garoto suicida. Naquele garoto estranho, que emprestei por alguns instantes sua dor.

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