27.6.08

Disseram que lá embaixo, no meio do abismo, vai ter uma festa, mas eu não quero ir


Eu não ia mais falar nele. Não aqui e não por bastante tempo. Porque ele não é um problema meu. Escrevi uma vez que entendia essas coisas que nunca páram de acontecer, mas não entendo, tentar entender é algo que dói mais que viver nisso. Não é o casa de desculpar ou perdoar, não é o casa de escrever uma carta e deixar lá debaixo das camisas na gaveta. Não. Já deixei de sentir. Guardo um pouco de raiva sim, afinal, não fui eu quem disse sim ou que escolheu nomes e móveis. Fui crescendo entre socos e palavras que jamais serão esquecidas. Mas o que aconteceu comigo foi o contrário do que acontece por aí, eu quis sair de lá, quis deixá-los sozinhos e viver o que tinha pra mim, do lado de lá as pedras vinham com força e eu já cheguei a pensar que talvez fosse mesmo minha culpa e que eu tinha que resolver. Não, eu só era "pequena" demais pra enxergar por trás daqueles muros. Ontem ele estava no sofá assistindo o jornal com aquela cara de quem só está esperando uma brecha. E eu fujo dessas, eu me escondo nos cantos e tapo os ouvidos. Mas ontem eu estava preparando o molho do macarrão, molho pronto com carne moída, atenta no macarrão cozinhando na panela maior pra não grudar. Tinha cozinhado batatas e tava decidindo se faria um purê, o que não orna com macarrão mas eu gosto assim. Ele entrou na cozinha com uma conversa sobre um cara que pegou um livro meu emprestado e disse que vai devolver. Foi só isso que ele disse, que o cara vai devolver. continuei circulando a panela com a colher, o macarrão quase no ponto, nem duro nem derretido. Saiu e voltou com um livro grande de capa verde escuro, um livro que ainda não tinha visto na casa. Folheava o livro perto de mim chamando minha atenção pra algumas páginas onde umas fotos muito bonitas estampavam aves de todas as cores. Urubu-de-pescoço-preto, saí-azul, urubu-caçador-de-macaco, e ia falando onde já tinha visto aquelas aves, e falava comigo como se uma conversa daquelas fosse tão comum entre nós dois. Como se eu fose me sentar a mesa e lhe servir aquele macarrão todo feito as pressas entre risos e confidências. Ao mesmo tempo que tinha vontade de perguntar se ele já tinha visto um urubu comer um macaco tinha vontade de enfiar aquele livro tão bonito dentro da água fervendo, antes de sair dali correndo pros cantos. Mas ele deve ter percebido que não estava funcionando, que seria preciso muito mais pra arrancar de mim uma palavra sequer. Apenas saiu da cozinha e voltou pro sofá, resmungando vez ou outra, com aquele olhar perdido em anos atrás. Eu me sentei sozinha a mesa, eu me servi daquele molho pronto com uma vontade incontrolável de chorar. Não estava triste, eu só não queria estar sozinha ali, não ali. Enchi o cesto com umas roupas sujas e subi as escadas pra lavanderia. Eu lavei roupas pra não chorar, porque não consigo fazer duas coisas ao mesmo tempo ali. Separei as cores e deixei as meias que estavam um tanto encardidas de molho na água sanitária. Quando entrei denovo na casa a televisão estava desligada e nenhum barulho além do meu chinelo se ouvia na sala. Meu quarto não é nenhum refúgio, eu não fico mais feliz me enganando. Preciso de um emprego novo, de menos espaços, de mais diversão. Só não queria ficar agora com essa dúvida sobre urubus e macacos e tantos anos sem nenhuma palavra. E eu não quero mais. Quem sabe um dia alguém nos veja rachando uma cerveja por aí, mas não quero esperar esse tipo milagre acontecer. Matei muita coisa boa enquanto me preocupava com raiva e angústia. Fiz pessoas que me são muito caras desistirem de mim porque eu tava misturando tudo. Desculpa aí gente!

Hoje pela manhã antes de sair de casa me perguntou "sua mãe volta quando?" e de uma vez por todas eu tapei meus ouvidos. Porque o problema dele é problema de homem. Não de pai.

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