29.5.10

a boca ainda inchada, os lábios mais parecidos com gomos de mexerica, e vermelhos e roxos e doloridos. a memória das últimas dez horas um tanto esfumaçada, meus olhos ardem com a luz do quarto. as portas do guarda roupa escancaradas, nenhuma roupa além das minhas poucas camisas e calças surradas e azul marinho e marrom claras. um gosto azedo na boca, minha barriga roncando, pernas doendo. o maço de cigarros caído no chão longe da minha cama, me esforço entre uma tosse de arrancar os cabelos da nuca e terríveis dores abdominais. tentaram me matar, de certo. a caixa de fósforos também no chão, mas do outro lado da cama. diabos, tenho que rastejar como um animal ferido. nenhuma dignidade. me acomodo no chão, puxo o lençol da cama e cubro minhas pernas brancas e flácidas e mijadas.

então saímos de casa planejando um passeio pelas ruas do bairro, já passava das onze, o jornal tinha sido uma merda como tem sido ha algum tempo, tínhamos cupons pra comer uma pizza, comemos. descemos a rua lateral, nós é que demos nome a essa rua, lateral, porque quando voltamos pela madrugada, trôpegos, damos nomes as coisas e aos lugares, é sempre a mesma coisa. eu andando dois passos atrás, fumando o cigarro até a bituca, olhando mais pro chão do que pra ela. ela falando sobre quase todas as coisas do mundo, gracejando, olhando pros meus pés e pra minha cara, andando sempre um pouco mais depressa que eu, pra evitar que nossas mãos fiquem muito próximas. sábado de noite, carros com famílias indo e vindo, namorados aproveitando sombras noturnas e beijos nervosos, cachorros, neblina. um bar logo a frente, entramos. sentamos numa mesa de três cadeiras acolchoadas. tinha música, tinha cerveja gelada e eu estava me sentindo bem, ali com ela e aqueles botões audaciosos da sua blusa.

gosto de sangue na minha boca. esse quarto revirado, cena de partida, silêncio. um trago no cigarro com um gemido de dor, acho que me atropelaram, um guinú enfurecido e não sei porque penso num guinú de camisa flanela, xadrez como um tabuleiro de jogos, copos arremessados, o garçom segurando meus pulsos, o olhar assustado que ela jogou pra cima de mim. acabo de me lembrar o nome do guinú, e de lembrar da cena inteira em que ele enlaçava a cintura dela, que sorria, que dançava, que sorvia goles de cerveja sem culpa, sem perceber quando me levantei desequilibrado e falei sobre suas manias e despejei uma caneca de ciúmes sobre seus cabelos. o bar fervia pois ainda era cedo pra noite se cansar. seguramos um no braço do outro e ela me lançou aquele olhar de quem me mataria naquele exato segundo se pudesse. entramos numa farmácia vinte e quatro horas, ela pediu água oxigenada e esparadrapo e uma gaze. eu fiquei olhando comisinhas, todo tipo de camisinha, antes era só pedir um pacote de camisinhas e trepar, agora te perguntam até o sabor, e ninguém trepa como antes também. o atendente olhou dentro do decote dela, me aproximei e fechei o botão da blusa sorrindo, e voltei pras camisinhas, o atendente entregou o que ela pediu e ela me pediu a grana, eu falei pra ela que camisinha agora é preservativo e tem cheiro de pasta de dente, ela soltou um vai se foder indiferente e enfiou o troco no bolso do jeans. daí eu olhei pra sua bunda, uma bunda empinada, redonda, uma bunda pequena. eu me apaixonei por aquela bunda e por todas as noites quando ela se virava de costas e se espremia em mim, ela se ajeitava e dormia enquanto passava boas horas bolinando sua bunda pequena. sentamos na calçada da farmácia e ela enrrolou os cabelos molhados de cerveja e prendeu no alto. eu perguntei porque estava tão brava e ela não respondeu, apenas derramou água oxigenada na minha cara e nas minhas mãos que sangravam e fez um curativo. ficamos um bom tempo sentados ali, em silêncio, ela começou a chorar. eu sabia que as coisas não estavam bem pra nós, mas eu queria que ela soubesse que eu a amava e eu soltei seus cabelos e os beijei, ela soluçava. acendi um cigarro e ela me acompanhou, ficamos fumando idéias silenciosas.

você sempre faz isso, você é um puto fodido

e aquele viado queria o que, minha putinha?

eu quero beber umas cervejas, meu cabelo tá grudento, vou gastar seu dinheiro com cervejas

tem um bar aqui perto, prometo me comportar mamãe - eu disse repetindo uma brincadeira iditoa que sempre fazia ela sorrir.

ela sorriu e se levantou e me ajudou a me levantar. beijei seus lábios. entramos em outro bar e não tinha música, ela se debruçou no balcão e perguntou se podia usar o banheiro, o cara no balcão apontou pra uma portinha no final de um corredor. ela segurou minha mão com cuidado pra não desfazer o curativo, eu pedi uma cerveja pra cada e ela foi andando rindo baixinho como uma louca. entramos no banheiro feminino e ela se sentou num balcão pequeno ao lado da pia, seu rosto já não era tão jovem mas muito bonito, e seu jeito de falar e gesticular e rir e seu jeito todo era uma coisa insuportávelmente bonita. eu pedi desculpas e antes que eu tivesse terminado algum tipo de explicação ela enfiou a língua dentro da minha boca e abriu meu zíper. saímos do banheiro quando alguém bateu na porta. pegamos nossas cervejas e sentamos no balcão. ela ficou roendo unhas e fazendo círculos invisíveis sobre o balcão com a ponta dos dedos roídos. saí pra fumar um cigarro. lembrei de quando a conheci. pensei nas coisas que mudam o tempo todo, nas dificuldades pra voltar atrás e pra seguir em frente, nos preços das coisas nos supermercados, nos anúncios de emprego e nas falcatruas políticas, eu passaria o resto da noite parado ali enquanto poucos carros passavam e as pessoas iam pra algum lugar fazer coisas incríveis como todos nós deveríamos fazer, a noite merece ser boa, e os postes piscavam, falhavam, a luz amarelada refletia nos retorvisores e era como um piscar de olhos pra mim, a noite me seduzia.

quando voltei ela continuava com seus círculos e me dise que tinha muito medo de não ficar velha no tempo certo, como se as coisas tivessem que acontecer a todo instante e ela estivesse perdendo tempo. eu entendi. eu disse que pra ficarmos velhos era só sentar numa poltrona confortável e esticar a pernas e esperar a velhice chegar, eu que não tenho planos e não queria entrar naquela ferida que ela tava querendo rasgar ainda mais. ela perguntou se eu queria outra cerveja e me pediu dinheiro pra mais duas que mandamos ver rapidamente, quase de uma vez só, era o último trago de nossas vidas. porque a vida seria outra e ela seria outra e eu não queria saber daquilo.

pego minhas coisas amanhã a noite, e você se cuida, né?

pode dormir lá quando quiser, você sabe que eu penso em tantas coisas...

fiquei sozinho esperando o som da porta do bar as minhas costas, aquela poeirinha de melancolia caindo devagar e sumindo. o cara no balcão me ofereceu um trago de algo que ele bebia escondido do patrão, conversamos sobre as mulheres e eu disse que nunca vou saber nada delas e que por isso não vou enlouquecer. ele me mostrou uma fotografia de uma garotinha no colo de uma moça loira, eram suas mulheres. e eu saí de lá com um vento solitário que batia na minha cara e que daria um blues, um tipo de despedida. caminhei contando os passos e contando o dinheiro que sobrou e numa esquina ouvi uns gemidos e passos e o guinú veio pra cima de mim numa velocidade incrível.

lembro de chegar em casa horas depois. acho que desmaiei. alguém me colocou na cama. alguém que arrumou malas e problemas enquanto eu dormia. e foi embora.
pensei em Deus, e ele criou as mulheres pra que não perdessemos a fé, e então nos fodemos, todos. quando conseguir me levantar daqui volto naquela farmácia pra perguntar pra rapazinho tarado se alguém realmente compra todo tipo daquelas camisinhas e se ele pensa em Deus e no diabo e se ele tem idéia de quanto tempo temos até ficarmos velhos no tempo certo.

28.5.10

depois de um tempo...

insanidade retrocede inclusive (e, portanto) escolhas ruins. Não é loucura perder a razão em espaços entre o sentido das coisas, rumos, aquilo que se sonha, quem a gente ama. Não se pode também, por arriscar todas as fichas em alguma coisa parecida com destino, repetir erros velhos. Perdas não justificam danos. Esqueça, as vezes a gente precisa de muito mais que feridas pra entender o ódio, e a raiva. Algumas pessoas nunca vão entender. Admitir um ato falho é difícil, cair no labirinto das mil explicações do que é certo ou errado, debilmente, não. A certa altura, e tão somente a longo prazo, começamos a calcular o que pode ter quebrado, torcido, fundido, o que pode ter dado errado. Céus, não! Aposte uma última ficha se tiver coragem, jogue a porra da consciência ao alto! As vezes aquilo que nos escapa, TUDO aquilo que ninguém mais vai saber descrever, mastigar, aquilo nosso e de mais ninguém em lugar nenhum, entende? Aquele negócio amargo, um fardo, aquela gosma que a gente enfia nos bolsos timidamente, com alegria, aquele negócio que deixa a gente doente mas que também cura uma porrada de doenças que a alma vai sugando pelo caminho, alguns falam de amor, e continuam pensando em pecados.

27.5.10

eu te amo

"Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir

Ah, se ao te conhecer
Dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir

Se nós nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir

Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu

Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu

Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios ainda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair

Não, acho que estás te fazendo de tonta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir"
a boca ainda inchada, os lábios mais parecidos com gomos de mexerica, e vermelhos e roxos e doloridos. a memória das últimas dez horas um tanto esfumaçada, meus olhos ardem com a luz do quarto. as portas do guarda roupa escancaradas, nenhuma roupa além das minhas poucas camisas e calças surradas e azul marinho e marrom claras. um gosto azedo na boca, minha barriga roncando, pernas doendo. o maço de cigarros caído no chão longe da minha cama, me esforço entre uma tosse de arrancar os cabelos da nuca e terríveis dores abdominais. tentaram me matar, de certo. a caixa de fósforos também no chão, mas do outro lado da cama. diabos, tenho que rastejar como um animal ferido. nenhuma dignidade. me acomodo no chão, puxo o lençol da cama e cubro minhas pernas brancas e flácidas e mijadas.

saímos de casa planejando um passeio pelas ruas do bairro, já passava das onze, o jornal tinha sido uma merda como tem sido ha algum tempo, tínhamos cupons pra comer uma pizza, comemos. descemos a rua lateral, nós é que demos nome a essa rua, lateral, porque quando voltamos pela madrugada, trôpegos, damos nomes as coisas e aos lugares, é sempre a mesma coisa. eu andando dois passos atrás, fumando o cigarro até a bituca, olhando mais pro chão do que pra ela. ela falando sobre quase todas as coisas do mundo, gracejando, olhando pros meus pés e pra minha cara, andando sempre um pouco mais depressa que eu, pra evitar que nossas mãos fiquem muito próximas. sábado de noite, carros com famílias indo e vindo, namorados aproveitando sombras noturnas e beijos nervosos, cachorros, neblina. um bar logo a frente, entramos. sentamos numa mesa de três cadeiras acolchoadas. tinha música, tinha cerveja gelada e eu estava me sentindo bem, ali com ela e aqueles botões audaciosos da sua blusa.


gosto de sangue na minha boca. esse quarto revirado, cena de partida, silêncio. um trago no cigarro com um gemido de dor, acho que me atropelaram, um guinú enfurecido e não sei porque penso num guinú de camisa flanela, xadrez como um tabuleiro de jogos, copos arremessados, o garçom segurando meus pulsos, o olhar assustado que ela jogou pra cima de mim. acabo de me lembrar o nome do guinú, e de lembrar da cena inteira em que ele enlaçava a cintura dela, que sorria, que dançava, que sorvia goles de cerveja sem culpa, sem perceber quando me levantei desequilibrado e falei sobre suas manias e despejei uma caneca de ciúmes sobre seus cabelos. o bar fervia pois ainda era cedo pra noite se cansar. seguramos um no braço do outro e ela me lançou aquele olhar de quem me mataria naquele exato segundo se pudesse. entramos numa farmácia vinte e quatro horas, ela pediu água oxigenada e esparadrapo e uma gaze. eu fiquei olhando comisinhas, todo tipo de camisinha, antes era só pedir um pacote de camisinhas e trepar, agora te perguntam até o sabor, e ninguém trepa como antes também. o atendente olhou dentro do decote dela, me aproximei e fechei o botão da blusa sorrindo, e voltei pras camisinhas, o atendente entregou o que ela pediu e ela me pediu a grana, eu falei pra ela que camisinha agora é preservativo e tem cheiro de pasta de dente, ela soltou um vai se foder indiferente e enfiou o troco no bolso do jeans. daí eu olhei pra sua bunda, uma bunda empinada, redonda, uma bunda pequena. eu me apaixonei por aquela bunda e por todas as noites quando ela se virava de costas e se espremia em mim, ela se ajeitava e dormia enquanto passava boas horas bolinando sua bunda pequena. sentamos na calçada da farmácia e ela enrrolou os cabelos molhados de cerveja e prendeu no alto. eu perguntei porque estava tão brava e ela não respondeu, apenas derramou água oxigenada na minha cara e nas minhas mãos que sangravam e fez um curativo. ficamos um bom tempo sentados ali, em silêncio, ela começou a chorar. eu sabia que as coisas não estavam bem pra nós, mas eu queria que ela soubesse que eu a amava e eu soltei seus cabelos e os beijei, ela soluçava. acendi um cigarro e ela me acompanhou, ficamos fumando idéias silenciosas.


você sempre faz isso, você é um puto fodido


e aquele viado queria o que, minha putinha?


eu quero beber umas cervejas, meu cabelo tá grudento, vou gastar seu dinheiro com cervejas


tem um bar aqui perto, prometo me comportar mamãe


ela sorriu e se levantou e me ajudou a me levantar. beijei seus lábios. entramos em outro bar e não tinha música, ela se debruçou no balcão e perguntou se podia usar o banheiro, o cara no balcão apontou pra uma portinha no final de um corredor. ela segurou minha mão com cuidado pra não desfazer o curativo, eu pedi uma cerveja pra cada e ela foi andando rindo baixinho como uma louca. entramos no banheiro feminino e ela se sentou num balcão pequeno ao lado da pia, seu rosto já não era tão jovem mas muito bonito, e seu jeito de falar e gesticular e rir e seu jeito todo era uma coisa insuportávelmente bonita. eu pedi desculpas e antes que eu tivesse terminado algum tipo de explicação ela enfiou a língua dentro da minha boca e abriu meu zíper. saímos do banheiro quando alguém bateu na porta. pegamos nossas cervejas e sentamos no balcão. ela ficou roendo unhas e fazendo círculos invisíveis sobre o balcão com a ponta dos dedos roídos. saí pra fumar um cigarro. lembrei de quando a conheci. pensei nas coisas que mudam o tempo todo, nas dificuldades pra voltar atrás e pra seguir em frente, nos preços das coisas nos supermercados, nos anúncios de emprego e nas falcatruas políticas, eu passaria o resto da noite parado ali enquanto poucos carros passavam e as pessoas iam pra algum lugar fazer coisas incríveis como todos nós deveríamos fazer, a noite merece ser boa, e os postes piscavam, falhavam, a luz amarelada refletia nos retorvisores e era como um piscar de olhos pra mim, a noite me seduzia.


quando voltei ela continuava com seus círculos e me dise que tinha muito medo de não ficar velha no tempo certo, como se as coisas tivessem que acontecer a todo instante e ela estivesse perdendo tempo. eu entendi. eu disse que pra ficarmos velhos era só sentar numa poltrona confortável e esticar a pernas e esperar a velhice chegar, eu que não tenho planos e não queria entrar naquela ferida que ela tava querendo rasgar ainda mais. ela perguntou se eu queria outra cerveja e me pediu dinheiro pra mais duas que mandamos ver rapidamente, quase de uma vez só, era o último trago de nossas vidas. porque a vida seria outra e ela seria outra e eu não queria saber daquilo.


pego minhas coisas amanhã a noite, e você se cuida, né?


pode dormir lá quando quiser, você sabe que eu penso em tantas coisas...


fiquei sozinho esperando o som da porta do bar as minhas costas, aquela poeirinha de melancolia caindo devagar e sumindo. o cara no balcão me ofereceu um trago de algo que ele bebia escondido do patrão, conversamos sobre as mulheres e eu disse que nunca vou saber nada delas e que por isso não vou enlouquecer. ele me mostrou uma fotografia de uma garotinha no colo de uma moça loira, eram suas mulheres. e eu saí de lá com um vento solitário que batia na minha cara e que daria um blues, um tipo de despedida. caminhei contando os passos e contando o dinheiro que sobrou e numa esquina ouvi uns gemidos e passos e o guinú veio pra cima de mim numa velocidade incrível.


lembro de chegar em casa horas depois. acho que desmaiei. alguém me colocou na cama. alguém que arrumou malas e problemas enquanto eu dormia. e foi embora.

pensei em Deus, e ele criou as mulheres pra que não perdessemos a fé, e então nos fodemos, todos. quando conseguir me levantar daqui volto naquela farmácia pra perguntar pra rapazinho tarado se alguém realmente compra todo tipo daquelas camisinhas e se ele pensa em Deus e no diabo e se ele tem idéia de quanto tempo temos até ficarmos velhos no tempo certo.