6.11.10

ela terminou de tricotar o meu casaco e levantou a mala leve, eu nem precisei ajudá-la a carregar a mala até o táxi. tirei um trocado do bolso mas não estendi, seria demais pagar pela despedida. sempre achei muito bonito vê-la tricotar no sofá da sala, ela ficava em silêncio e as vezes resmungava algumas músicas e eu dizia "isso é bonito mesmo" e ela sorria frouxa sem tirar os olhos das mãos. eu ligava a televisão e smepre na hora da novela ficávamos em silêncio tricotando pensamentos e ruminando silenciosamente idéias e sonhos e jantares que devíamos a algumas pessoas. é sempre previsível, as novelas, aquelas frases feitas e uma trilha sonora horrosa. comentávamos "oh querida, você acredita nisso? eles vão se dar bem no final, todo mundo se dá bem no final". eu a conheci numa tarde de blues, ela veio na minha direção e me perguntou onde ficava o corredor dos enlatados, respondi numa tacada e ela sorriu. foi o único sorriso tranquilo depois disso. inventei um jeito de responder a essas perguntas mesmo sem muitas certezas. um supermercado pode ser a única referência no fim. ela nunca gostou dessa minha falta de jeito ou de afeto ou de coragem. uma vez eu disse a um amigo que eu estava feliz, uma outra eu disse que a bebida me enganava. sabe aquele minuto indiscreto de contentamento? já pensei em recomeçar uma porção de coisas, já pensei em telefonar pra aquele mesmo amigo e me desculpar, não que eu ou ele acreditássemos em arrependimento. ela passou muito tempo fazendo coisas e eu fazia coisas e as coisas faziam de nós tão estranhos quanto todo o resto. e aos poucos a casa ficava mais vazia. assim como aquelas gavetas que desistimos de abrir, não dá pra faxinar todas as lembranças. ela terminou o tricotar, eu acendi um cigarro, podia ter sido como naquelas novelas, como sempre acontece, e eu ainda acredito que os corredores mais perigosos não são aqueles dos enlatados.