25.10.11

M.

tinha menos da metade de uma garrafa de conhaque em cima da mesa na cozinha. me sentia estranhamente calmo, sentei-me sobre um pequeno colchonete no canto da sala. acendi um cigarro. cigarros eu tinha muitos, meu amigo Joca tinha me comprado muitos, foi presente. acho que ele se cansou de me emprestar tantos cigarros durante uma vida inteira, e se foi isso fico feliz em saber que não terminamos mal.
o Joca é um cara gordo, o cara mais gordo que eu já vi em toda minha vida. ele tem dois filhos pequenos, os dois são gordos também e sua mulher também é gorda. uma gorda lindíssima. eu disse a ele numa noite que foderia com ela se tivesse a chance naquele exato momento, também falei entre soluços que cuidaria das crianças. ele quase arrancou meu nariz fora num único soco. o Joca é meu melhor amigo e eu me sinto realmente bem por isso!
eu trabalhava numa fábrica de velas, e na maior parte do tempo eu detestava. pouco antes de pedir as contas vi um cara cair dentro de um caldeirão de cera quente, todo mundo ficou em silêncio quando ele voltou pro trabalho todo enfaixado poucas semanas depois. eu acordava ainda no escuro da manhã e me vestia mecanicamente depois de um café bem forte. quando voltava pra casa o dia já estava no fim e não havia nada a ser feito além de tomar uma banho morno e comer carne mal passada assistindo aos programas policiais. teve um caso que me deixou insone por semanas, o marido chega em casa e encontra a mulher só de calcinha no sofá abraçada a um outro homem, eles não mostraram fotografia deste e nem divulgaram o nome do marido, o marido fica louco e enfia a chave do carro no olho direito da mulher, o outro foge sem roupas, o marido encontra os documentos na carteira no bolso da calça do amante da sua mulher, encontra o endereço da sua casa, vigia por dias a fio, o cara ficou puto e nem quis saber da mulher caolha no hospital, ficou tão louco que um dia invadiu a casa do sujeito e o fodeu tanto no cú com um pé de cabra que o cara nunca mais pôde andar. era isso toda noite, na hora do jantar.
depois eu ia até o bar encontrar o Joca e o Marcão. o Marcão mal tinha um metro e meio de altura e ficava puto se alguém o chamasse simplesmente de Marcos, Marquinho então era motivo pra ele avançar em quem quer que fosse pronto pra briga. grandes caras!
ficávamos discutindo futebol até alguém se cansar e falar de boceta. o Marcão disse pra gente que tinha uma namorada negra de vinte e dois anos. ele era louco por ela e era sempre o primeiro a ir embora com a desculpa de que tinha que telefonar pra ela. nunca ninguém viu essa mulher. o Joca me falava sobre a vida dentro de casa, sobre os filhos com piolho, a mulher tomando pílulas pra emagrecer. ás vezes os olhos dele perdiam o brilho e afundavam numa neblina tão espessa que eu mal os podia ver. noutras ele se orgulhava por ter aquelas pessoas esperando por ele. um lugar pra onde voltar.
o bar era uma espécie de esconderijo pra nós. o bar é o único lugar pra onde você pode levar os seus problemas sem ter que encará-los como adversário. e lá todo mundo falava ao mesmo tempo, as mulheres entravam e não tinha uma que não dava uma ajeitada nos cabelos ou no jeans quando passavam pelo espelho, da porta até o balcão.
Marli era a mulher mais bonita daquele lugar. ela era a mulher mais bonita do bairro todo. a mais encrenqueira também. uma vez ela discutiu com um cara que pediu pra ela dançar, o cara era um mané e usava roupas coloridas e gastou a maior grana pagando bebia pra todo mundo. ele se apaixonou pela Marli. mas ela tinha perdido o marido e o filho num acidente e desde então a única coisa que fazia era beber todas as noites com uma grana gorda que ganhou do seguro e ficar lá puxando papo com a gente. ou só ficava lá sozinha, bebendo sozinha e amaldiçoando o destino. o mané colocou a mão na sua cintura e mal conseguiu ver de onde veio a pancada com toda a força batendo do lado direito da sua cabeça. caiu no chão e ela pisou no seu pinto com o salto da sandália. o cara ficou gemendo lá no chão e ninguém se importou muito.
quando o marido dela morreu eu a pedi em casamento. ela veio pra cima de mim e arrancou minha camisa e jogou o vestido pra cima. ela gritava e me arranhava e chorava. no outro dia pela manhã ela precisava organizar tudo para o velório e enterro. fui com ela até o banco, depois compramos os caixões e enquanto ela telefonava pra família eu fui até o quarto dela e vi duas malas grandes sobre a cama. ela entrou no quarto e me contou que ia embora naquela mesma manhã enquanto eles viajavam pra uma visita aos avós. ela me contou que sentia muita pena do que tinha acontecido a eles, pois o sofrimento da partida dela uma hora seria substituído por alguma outra mulher que pudesse cuidar de tudo e fosse feliz ali. mas agora o que ela podia fazer era botar todas as roupas de volta no armário e esperar o perdão de Deus por aquilo. Marli ia sempre à igreja e sempre falava de Deus e às vezes crispava com Ele.
no dia do velório muitas pessoas começaram a chegar, eu fiquei na cozinha ao lado da garrafa térmica com café fumando meus cigarros. as pessoas abraçavam aquela mulher e diziam sentir muito. eu não acreditei em nenhuma delas.
Marli ficou o dia todo falando com pessoas e abraçando pessoas e segurando a mão de pessoas que desmaiavam a cada meia hora. eu fiquei o dia todo ali olhando aquilo tudo, fiquei andando entre as pessoas que nos cantos da casa, longe dos olhares familiares, acusavam a mulher por toda aquela desgraça. a verdade é que ninguém queria estar ali, ninguém sem importava.
foi um acidente de carro. um homem desatento fez uma curva fechada e os acertou em cheio, o carro virou e os dois morreram ali mesmo. no meio da estrada. sem ninguém ter culpa disso além do pobre infeliz que fez uma curva muito fechada. velório, enterro, desespero. a morte não encerra tudo, então.
nunca mais falamos do meu pedido de casamento. eu a visitava duas ou três vezes por semana. comíamos, quase sempre só eu comia, em silêncio. um dia eu pedi pra que ela tirasse as coisas dele do armário e mandasse pra alguma dessas instituições. ela me acertou em cheio com a tampa da panela que segurava meio abobalhada olhando pro corredor. não falamos mais. sobre coisa alguma. eu chegava e ela já tirava a saia e se jogava na cama. depois tomava uma ducha rápida, pintava os lábios, colocava uma presilha nos cabelos e saíamos.
com o tempo tínhamos cada vez menos o que conversar, ela estava afundando numa escuridão que só ela podia compreender. eu acho que ela precisava daquilo. com o tempo ela perdia a cor, perdia a aspereza, ela estava indo embora. as vezes sumia por dias e eu não a procurava.
meu telefone tocou perto das quatro. tocou um bocado até que eu consegui me equilibrar sonâmbulo até a sala. disseram que saiu sangue até pelos ouvidos. não sabiam quando tinha acontecido, mas alguém sentiu um cheiro, alguém arrombou a porta e alguém achou que eu precisava saber.
o Joca apareceu em casa, trouxe uma garrafa de conhaque e ficamos sentados na sala. liguei o rádio e ouvimos "Oh goodbye everybody / I believe this is the end / I want you to tell my baby / Tell her please, please forgive me / Forgive me for my sins"
. torci pra que ela tivesse encontrado seu perdão, e que enfim pudesse ir embora como gostaria. adormeci no colchonete e não vi a hora que o Joca saiu, deixou anotado num pequeno pedaço de papel marrom: tudo termina ás 15 horas. mas eu não quis ir ao velório. eu me sentia realmente tranquilo. estranhamento calmo. pensei em tudo que já tinha feito até aquele instante. sentia o peso de cada osso do meu corpo, cada pedaço de pele já flácida. fiquei pensando na miséria da vida, nas dores da gente que ninguém pode alcançar. fiquei pensando na Marli e senti saudades. alcancei a garrafa e logo adormeci novamente. o telefone tocou todo o resto da tarde.

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